quarta-feira, 12 de março de 2025

Da diferença entre a simples afeição, a amizade e a devoção

René Descartes

Pode-se, parece-me, com melhor razão ainda distinguir o amor pela estima que se dedica ao que amamos em comparação com nós próprios; pois, quando estimamos o objeto de nosso amor menos que a nós mesmos, sentimos por ele simples afeição; quando o estimamos tal como a nós próprios, isso se chama amizade; e, quando o estimamos mais, a paixão que alimentamos pode ser chamada devoção.

Assim, pode-se ter afeição por uma flor, por um pássaro, por um cavalo; porém, a não ser que se tenha o espírito muito desregrado, não se pode nutrir amizade senão pelos homens. E eles são de tal modo objeto dessa paixão, que não há homem tão imperfeito que não se lhe possa dedicar amizade muito perfeita, quando se pensa ser amado por ele e se tem a alma verdadeiramente nobre e generosa, conforme o que será explicado mais adiante.

No que concerne à devoção, seu principal objeto é, sem dúvida, a soberana Divindade, em relação à qual não podemos deixar de ser devotos quando a conhecemos como se deve; mas podemos também sentir devoção por nosso príncipe, pelo nosso país ou nossa cidade, e mesmo por um homem particular, quando o estimamos mais do que a nós próprios.

Ora, a diferença que existe entre essas três espécies de amor aparece principalmente através de seus efeitos; pois, posto que em todas nos consideramos unidos e juntos à coisa amada, estamos sempre prontos a abandonar a parte menor do todo que se compõe com ela para conservar a outra; o que faz com que, na simples afeição, se prefira sempre a si próprio ao que se ama e que, ao contrário,  na devoção se prefira de tal modo a coisa amada ao eu próprio que não se receia morrer para conservá-la.

Viram-se muitas vezes exemplos disso nos que se expuseram à morte certa em defesa de seu príncipe ou de sua cidade, e até, algumas vezes, de pessoas particulares às quais se haviam devotado.

Texto: René Descartes, in “Os Pensadores – XV”, página 259
Digitação: JP, 12-3-2025


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