terça-feira, 11 de março de 2025

“a existência de Deus está mui evidentemente demonstrada.”

René Descartes 

(…)

No que se refere aos meus pais, aos quais parece que devo meu nascimento, ainda que seja verdadeiro tudo quanto jamais pude acreditar a seu respeito, daí não decorre todavia  que sejam eles que me conservam, nem que me tenham feito e produzido enquanto coisa pensante, pois apenas puseram algumas disposições nessa matéria, na qual, julgo eu, isto é, meu espírito – a única coisa que considero atualmente como eu próprio – se acha encerrado; e, portanto, não pode haver aqui, quanto a eles, nenhuma dificuldade, mas é preciso concluir necessariamente que, pelo simples fato de que eu existo e de que a ideia de um ser soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está mui evidentemente demonstrada.

Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri esta ideia. Pois não a recebi dos sentidos e nunca ela se ofereceu a mim contra minha expectativa, como o fazem as ideias das coisas sensíveis quando essas coisas se apresentam ou parecem apresentar-se aos órgãos exteriores de meus sentidos.

Não é também uma pura produção ou ficção de meu espírito; pois não está em meu poder diminuir-lhe ou acrescentar-lhe coisa alguma. E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer senão que, como a ideia de mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o momento em que fui criado.

E certamente não se deve achar estranho que Deus, ao me criar, haja posto em mim esta ideia para ser como que a marca do operário impressa em sua obra; e não é tampouco necessário que essa marca seja algo diferente da própria obra.

Mas pelo simples fato de Deus me ter criado, é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido à sua imagem e semelhança e que eu conceba essa semelhança (na qual a ideia de Deus se acha contida) por meio da mesma faculdade pela qual me concebo a mim próprio; isto quer dizer que, quando reflito sobre mim, não só conheço que sou uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que tende e aspira incessantemente a algo de melhor e de maior do que sou, mas também  conheço, ao mesmo tempo, que aquele de quem dependo possui em si todas essas grandes coisas a que aspiro e cujas ideias encontro em mim, não indefinidamente e só em potência, mas que ele as desfruta de fato, atual e infinitamente e, assim, que ele é Deus.

E toda a força do argumento de que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível que minha natureza fosse tal como e, ou seja, que eu tivesse em mim a ideia de um Deus, se Deus não existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma ideia em mim, isto é, que possui todas essas altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma ideia, sem, no entanto, compreendê-las a todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada tem de todas as coisas que assinalam alguma imperfeição

Daí é bastante evidente que ele não pode ser embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste depende necessariamente de alguma carência.

Mas, antes de examinar mais cuidadosamente isso e passar à consideração das outras verdades que daí se podem inferir, me parece muito a propósito me deter algum tempo na contemplação deste Deus todo perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz, ao menos na medida em que a força de meu espírito, que queda de algum modo ofuscado por ele, me puder permitir.

Pois, como a fé nos ensina que a soberana felicidade da outra vida não consiste senão nessa contemplação da Majestade divina, assim perceberemos, desde agora, que semelhante meditação, embora incomparavelmente menos perfeita, nos faz gozar do maior contentamento de que sejamos capazes de sentir nesta vida.

Texto: René Descartes, in “Os Pensadores – XV”, páginas 119 a 121
Digitação: JP, 11-3-2025


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