(…)
No que se refere aos meus pais, aos quais parece que devo meu nascimento, ainda que seja verdadeiro tudo quanto jamais pude acreditar a seu respeito, daí não decorre todavia que sejam eles que me conservam, nem que me tenham feito e produzido enquanto coisa pensante, pois apenas puseram algumas disposições nessa matéria, na qual, julgo eu, isto é, meu espírito – a única coisa que considero atualmente como eu próprio – se acha encerrado; e, portanto, não pode haver aqui, quanto a eles, nenhuma dificuldade, mas é preciso concluir necessariamente que, pelo simples fato de que eu existo e de que a ideia de um ser soberanamente perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está mui evidentemente demonstrada.
Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri esta ideia. Pois não a recebi
dos sentidos e nunca ela se ofereceu a mim contra minha expectativa, como o
fazem as ideias das coisas sensíveis quando essas coisas se apresentam ou
parecem apresentar-se aos órgãos exteriores de meus sentidos.
Não é também uma pura produção
ou ficção de meu espírito; pois não está em meu poder diminuir-lhe ou
acrescentar-lhe coisa alguma. E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer
senão que, como a ideia de mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o
momento em que fui criado.
E certamente não se deve achar
estranho que Deus, ao me criar, haja posto em mim esta ideia para ser como que
a marca do operário impressa em sua obra; e não é tampouco necessário que essa
marca seja algo diferente da própria obra.
Mas pelo simples fato de Deus me ter criado, é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido à sua imagem e semelhança e que eu conceba essa semelhança (na qual a ideia de Deus se acha contida) por meio da mesma faculdade pela qual me concebo a mim próprio; isto quer dizer que, quando reflito sobre mim, não só conheço que sou uma coisa imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que tende e aspira incessantemente a algo de melhor e de maior do que sou, mas também conheço, ao mesmo tempo, que aquele de quem dependo possui em si todas essas grandes coisas a que aspiro e cujas ideias encontro em mim, não indefinidamente e só em potência, mas que ele as desfruta de fato, atual e infinitamente e, assim, que ele é Deus.
E toda a força do argumento de
que aqui me servi para provar a existência de Deus consiste em que reconheço
que seria impossível que minha natureza fosse tal como e, ou seja, que eu
tivesse em mim a ideia de um Deus, se Deus não existisse verdadeiramente; esse
mesmo Deus, digo eu, do qual existe uma ideia em mim, isto é, que possui todas
essas altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma ideia, sem, no
entanto, compreendê-las a todas, que não é sujeito a carência alguma e que nada
tem de todas as coisas que assinalam alguma imperfeição
Daí é bastante evidente que
ele não pode ser embusteiro, posto que a luz natural nos ensina que o embuste
depende necessariamente de alguma carência.
Mas, antes de examinar mais
cuidadosamente isso e passar à consideração das outras verdades que daí se
podem inferir, me parece muito a propósito me deter algum tempo na contemplação
deste Deus todo perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos
atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz,
ao menos na medida em que a força de meu espírito, que queda de algum modo
ofuscado por ele, me puder permitir.
Pois, como a fé nos ensina que
a soberana felicidade da outra vida não consiste senão nessa contemplação da
Majestade divina, assim perceberemos, desde agora, que semelhante meditação,
embora incomparavelmente menos perfeita, nos faz gozar do maior contentamento
de que sejamos capazes de sentir nesta vida.
Digitação: JP, 11-3-2025
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