domingo, 10 de agosto de 2025

A ONU e Gaza

Henrique Pereira dos Santos

O Estado de Israel foi criado por uma decisão unânime das Nações Unidas.

Acontece que os seus vizinhos e todos os estados árabes nunca estiveram de acordo com a decisão, e no dia seguinte à proclamação do Estado de Israel, invadiram-no para o liquidar e inviabilizar a resolução da ONU com base na qual tinha sido criado.

A história desse conflito é muito anterior à criação do Estado de Israel, na região havia tensões entre muçulmanos, judeus e cristãos (nas múltiplas variantes destas três grandes religiões, a que se somam outras religiões que não se filia diretamente em nenhuma destas três) há séculos, e na primeira metade do século XX essas tensões assumiam, frequentemente, aspectos violentos, com massacres de parte a parte.

Primeiro ponto que é preciso reter: se é verdade que há uma migração contínua de judeus para o médio oriente, sobretudo a partir de meados do século XIX e do reforço da ideia de uma Jerusalém judaica eterna, é completamente falso que os judeus que formam o Estado de Israel são invasores vindos de outro lado qualquer.

Sempre houve judeus onde hoje é o Estado de Israel, a maioria das terras (mas não da população) eram de judeus (embora a compra de algumas dessas terras tivessem uma propriedade discutível e não fosse linear que os que se reclamavam donos e as venderam fossem, de facto, os seus donos) e boa parte dos que migraram para o Estado de Israel à procura de proteção eram judeus de todo o médio oriente, tendo sido expulsos ou levados a migrar pelo poder crescente de estados árabes mais intolerantes que o império otomano.

Era esse o contexto inicial da presença da ONU, o de uma resolução que pretendia apaziguar as tensões existentes, com a criação de um Estado judeu e um Estado árabe (tal como o Líbano pretendia ser um refúgio para os cristãos do médio-oriente).

O projeto inicial da ONU falhou por completo visto que todos os Estados árabes rejeitam a criação do Estado de Israel, o atacam militarmente e são derrotados nessa guerra.

Os principais resultados dessa derrota militar são que o Estado de Israel redefine as suas fronteiras, sem respeitar a decisão inicial da ONU, e muitos árabes ou são expulsos, ou fogem da guerra para os países vizinhos, dando origem ao grande problema dos refugiados, que os estados árabes vizinhos de Israel não integram nas suas sociedades, por entenderem que o direito de regresso era total e aconteceria num futuro em que o Estado de Israel era destruído.

A ONU passa, por isso, a ter dois problemas para resolver, o facto do Estado de Israel se recusar a voltar às fronteiras anteriores à guerra (por entender que são indefensáveis) e o facto de haver milhares de refugiados que não querem ou não podem voltar às suas terras dentro das novas fronteiras de Israel, e são párias nos países para que fugiram (há um conjunto alargado de direitos que lhes são negados pelos Estados de acolhimento, como o direito de propriedade, e há conflitos permanente com as populações locais, que de vez em quando se traduzem na sua expulsão pelos países de acolhimento).

Esquecemos a primeira questão, que na verdade está resolvida (a ONU faz resoluções a condenar Israel, Israel reponde, como Golda Meir, dizendo que prefere receber condenações a condolências), e olhemos para a forma como a ONU tem tratado a questão dos refugiados, ligando-a com a atual guerra de Gaza.

A ONU assumiu um compromisso humanitário para com os refugiados, mas, coisa extraordinária, estendeu esse compromisso aos seus descendentes, pelo que hoje, em vez de terem diminuído, os refugiados aumentam todos os anos, criando um exército de dependentes da ajuda humanitária.

É a própria ONU que admite, aqui e ali, a ineficiência dos seus sistemas de ajuda humanitária, ao admitir que 90% da ajuda alimentar destinada a Gaza não chega ao seu destino.

É a ONU que explica a sua ligação funcional ao Hamas porque, em todos os cenários, trabalha com os poderes de facto, mesmo quando, como é o caso, os poderes de facto são poderes totalitários que não reconhecem outra regra que a que decorre da sua leitura do Corão, usando as boas intenções da ONU a seu favor.

A ONU, tal como as organizações internacionais que atuam em Gaza, fingem desconhecer que um poder totalitário como o do Hamas jamais deixará que pessoas com reservas evidentes contra a ditadura sanguinária do Hamas trabalhem para os organismos nacionais, e acabam a lavar a propaganda do Hamas reproduzindo dados e alegações que lhes são transmitidas pelos seus funcionários que, por exemplo, no caso da Médicos sem Fronteiras, são 1000 palestinianos e trinta trabalhadores internacionais.

De resto, quando a ONU avalia a alegação Israelita de que 12 funcionários da UNRWA participaram no massacre de 7 de Outubro, diz que a alegação é falsa porque não são 12, são só 9 aqueles em que há evidências de terem participado (se a informação for válida) e outros 9 não se conseguiu demonstrar que estavam envolvidos, na linha, aliás, do que são as alegações gerais da UNRWA  "less than 1 per cent of its 30,000 staff across all UNRWA fields of operations were identified as having breached neutrality throughout the period specified above, mainly through posting inappropriate content on social media".

Quer isto dizer que a ONU é um parceiro estratégico do Hamas?

Sim e não.

É um parceiro estratégico porque é da natureza da ONU trabalhar com os poderes de facto que existem e, no caso, o poder de facto é do Hamas (depois da guerra civil que permitiu ao Hamas expulsar, torturar e matar todos os seus opositores, ocupando o poder de forma totalitária).

É um parceiro estratégico, do ponto de vista do Hamas, porque lhe permite controlar a ajuda internacional como o mecanismo mais eficaz para manter o controlo sobre uma população totalmente dependente da ajuda externa (é por isso que o Hamas combate ferozmente o modelo militarizado de ajuda da GHF, que até agora não permitiu que nenhum dos seus camiões de ajuda alimentar tenham sido desviados, como acontece em percentagens que chegam aos 90% dos camiões da ONU).

A ONU recusa-se a classificar o Hamas como um movimento terrorista (como, aliás, se tem recusado, até agora, a declarar a existência de fome em Gaza, é curioso, não é?) mas isso não significa qualquer simpatia da ONU para com o Hamas, significa que a ONU não quer cortar as ligações com o poder de facto que lhe permite estar em Gaza a prestar ajuda humanitária e que a maioria dos países da ONU têm regimes mais próximos da ditadura do Hamas que da democracia israelita, nada mais.

Na prática, a ONU tem desempenhado na perfeição o seu papel de idiota útil em Gaza, o que se compreende, dado que a alternativa era propor-se a tomar conta do governo de Gaza com forças de capacetes azuis, o que a experiência do Sul do Líbano evidentemente desaconselha.

Infelizmente, isso implica que a ONU funcione como lavandaria da propaganda do Hamas, reciclando a informação produzida pelo Hamas, dando-lhe a cobertura da credibilidade da ONU, à custa, naturalmente, da erosão contínua dessa credibilidade.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 10-8-2025

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-