José Manuel Fernandes
Não se iludam: Trump está a explorar a cegueira
de quem o critica sem compreender as inseguranças que levaram tantos americanos
a elegê-lo. O nativismo não se combate com um cosmopolitismo histriónico
Não vale a pena disfarçar: a
rapidez com que Donald Trump começou a assinar “ordens executivas” apanhou-nos
de surpresa. Como já nos tinha apanhado de surpresa a sua vitória. Escrevi no dia seguinte que acordáramos num mundo que deixáramos de conhecer,
e falei de espanto e choque. Pouco mais de uma semana depois de ter tomado
posse é necessário ter a humildade de reconhecer que Trump continua a
surpreender-nos – quem preveria que ele ia cumprir à letra as promessas de
campanha, mesmo as mais excessivas? – e que o mundo se tornou assim não apenas
mais imprevisível como mais perigoso.
Antes de tudo o mais,
procuremos, com a serenidade possível, compreender o que se está a passar, até
porque o corte de Trump com o passado é, em muitas frentes, mais retórico do
que substancial – e por isso mesmo pode ser mais perigoso, pois mexe com
emoções a irracionalidades.
Deu ordens para que a
construção do “muro” na fronteira com o México avance? É verdade. Mas também é
verdade que um terço desse muro já está construído, obra de sucessivos
presidentes, uns republicanos, outros democratas. O que é diferente em Trump é
que o que era motivo de vergonha passou a ser motivo de orgulho. O que é
significativo é que tenha passado a chamar “muro” ao muro, em vez de lhe chamar
“vedação” ou “gradeamento”. As palavras têm imenso significado, mas já
voltaremos a elas.
Deu também ordens para que os
visitantes provenientes de sete países de maioria muçulmana não entrassem nos
Estados Unidos por um período de três meses. Que países escolheu? Os que a
anterior administração, a de Obama, tinha colocado na lista dos mais perigosos no que respeita à exportação de
terroristas. Nem mais um, nem menos um. E se essa ordem executiva barra a
entrada a refugiados sírios, que moral tem a Europa (quase toda ela) para falar
desse assunto? Mais: que moral tem o próprio Obama, já que nos primeiros anos
do conflito os Estados Unidos quase não receberam refugiados desse país (29 em 2011,
31 em 2012, 36 em 2013 e 105 em 2014, só em 2016 este número tendo ultrapassado
os 10 mil)? De resto o próprio Obama emitiu ordens de restrições temporárias e seletivas
à imigração vinda exatamente dos mesmos países.
Mais uma vez o que aqui é
radicalmente novo é a linguagem adoptada e o “orgulho” em barrar a entrada a
imigrantes vindos desses sete países de maioria muçulmana. E o sucesso da
mensagem: numa das primeiras sondagens divulgadas depois de
conhecida esta “ordem executiva” 48% dos americanos disseram apoiá-la, contra
42% que disseram estar contra. Noutra sondagem o apoio à medida chega mesmo aos 57%.
As manifestações que enchem os noticiários não parecem refletir o sentimento da
maioria, pelo que em vez de nos entusiasmarmos com elas devemos preocupar-nos
com o sucesso de Trump junto dos eleitores – mais uma vez.
Por isso regresso ao tema da
humildade e da linguagem. Humildade porque temos de perceber as razões do
sucesso político – persistente – de Donald Trump. Linguagem porque aquilo a que
estamos a assistir é a uma corrupção de valores que se traduz numa sistemática
violação de interditos. Sendo que há interditos e interditos.
Nas últimas décadas assistimos
a um assalto do “politicamente correto” que tratou de impor uma linguagem única
que, mais do que corresponder a valores democráticos e humanistas partilhados
por todos, correspondeu à tentativa de impor uma agenda ideológica de
“engenharia social”. Ainda esta semana Helena Matos nos
falava de como as palavras se tornaram na nossa prisão, e não há
dúvida que colocou o dedo na ferida.
Na sua campanha, e agora na
sua Presidência, Trump explorou o ressentimento contra essa ditadura do
“politicamente correto”, mas ao fazê-lo não ridicularizou apenas os seus
excessos, minou ao mesmo tempo os interditos que nos permitem conviver de forma
civilizada. A forma como tratou na campanha, e está de novo a tratar com todo o
teatro em torno das suas ordens executivas, os mexicanos e os muçulmanos não
tem a nada a ver com recusar a ortodoxia dos polícias da linguagem, antes
desperta e explora os sentimentos mais rasteiros da sua base eleitoral.
Não gosto de estabelecer
paralelos históricos que podem induzir em erro, e não julgo que estejamos a
reviver esse tempo sombrio e de extremos que foi a década de 1930, mas se
lermos a história com cuidado então saberemos que nessa época a catástrofe das democracias
foi uma consequência da radicalização das margens e do colapso do centro. Hoje
não assistimos a guerras de rua como as que opunham, nesse tempo, os grupos
armados de extrema-direita e de extrema-esquerda, mas a guerra de linguagens,
de preconceitos e de palavras a que já estamos a assistir é disso um
inquietante prelúdio. Um incendiário prelúdio. Um prelúdio onde o excesso e a
javardice – perdoem-me o termo – são já demasiado comuns.
Quase tudo aquilo que os
adversários de Trump têm vindo a fazer tem contribuído para que ele reforce a
sua posição. Quando os atores milionários de Hollywood fazem comícios em cada
cerimónia em que aparecem, os eleitores de Trump não vacilam, cerram fileiras.
Quando Obama quebra a regra do silêncio que os ex-presidentes sempre respeitam
está a dar força aos que protestam, mas não a enfraquecer a legitimidade de
Trump, antes a reforçá-la. Quando os órgãos de informação tratam de forma
totalmente desproporcionada os protestos anti-Trump e as manifestações de apoio estão a fechar-se ainda mais na “bolha” que os impediu de perceberem o descontentamento anti-establishment que
grassava (e grassa) na América que não vive nas grandes cidades.
Eu sei que tudo o que escrevi
no anterior parágrafo contraria o espírito do tempo, pelo menos o espírito do
tempo que domina a nossa comunicação social. Mas isso não me interessa. O que
me interessa é contrariar Trump (e os seus aliados europeus) no seu próprio
território, falando aos que o apoiam, mostrando que compreendo os seus problemas,
mas que as minhas soluções são melhores, mais eficazes, mais moderadas e mais
inclusivas. Ora não posso fazê-lo sem começar pelo princípio, isto é, por
reconhecer que existe um problema e que esse problema está na forma como lido
com as fronteiras e com os poderes do Estado-nação. O que implica desafiar
muitos tabus.
O nativismo floresce em muitos
países – e não apenas nem sobretudo nos Estados Unidos – porque grande parte da
população sente que deixou de controlar o seu destino, nalguns casos que é
quase estrangeira no seu próprio país. O que é confortável para a elite
cosmopolita, que aboliria já hoje todas as fronteiras, cria insegurança entre
todos os que vão ficando sem as suas referências tradicionais. Essa mesma elite
que se diz pronta a acolher todos os migrantes que chegarem ao mundo
desenvolvido também não vive nos bairros onde esses migrantes depois se
instalam, nem anda nos mesmos transportes públicos.
Não era preciso haver ameaças
terroristas para que, nos dias da globalização, fosse necessário controlar o
movimento das populações. Não era necessário termos visto chegar Trump (e os
seus amigos europeus) para concluirmos que só no quadro dos Estados-nação é
possível forjar consensos democráticos coletivamente assumidos, e que não há
Estados-nação sem fronteiras e que estas, mesmo porosas, têm de ser fronteiras.
Porque senão algum dia alguém fará delas muros.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
31-1-2017
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