domingo, 26 de novembro de 2017

Um país sem remédio

Alberto Gonçalves

No fim, como de costume, as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para justificar o barulho e cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo.

Há tempos, o Porto, ou alguém em seu nome, candidatou-se a receber em definitivo uma resma de burocratas europeus, vulgo EMA. Esta semana, perdeu a candidatura. O governo, que começou por decretar Lisboa o único ponto geográfico capaz de alcançar tamanha honra e em seguida andou aos ziguezagues, decidiu agora compensar o Porto através da cedência de uma resma de burocratas caseiros, vulgo Infarmed. O dr. Rui Moreira ficou muito contente. Os funcionários do Infarmed, que consta habitarem lá em baixo, não ficaram tão contentes. E o povo que opina sobre assuntos assim desatou a discutir a legalidade ou a ilegalidade da decisão, os méritos e os deméritos das duas cidades, as vantagens e as desvantagens da descentralização, o cérebro do dr. Costa ou a falta dele.

Por mim, estou disposto a aceitar que trezentos e tal funcionários públicos fresquinhos representam uma enorme benfeitoria para a Invicta, que pelos vistos não tinha os bastantes. Conseguem imaginá-los a cirandar pelos Aliados e pelos Clérigos ao pôr-do-sol? A alma da Baixa vai desabrochar em flor. E os portuenses, cuja expectativa e cuja gratidão são grandes, já saíram à rua aos magotes, a celebrar a novidade e a agradecê-la aos céus, ao PS e a tudo o que é divino. Em suma, o Infarmed no Porto parece uma ideia portentosa. Mas não quero concluir nada até perceber, com a profundidade permitida por meia hora de consultas na “net”, o que é o Infarmed.

E o que é o Infarmed? A acreditar na Wikipédia, é um organismo estatal destinado a “regular e a supervisionar” medicamentos, além de “regulamentar, avaliar, autorizar, disciplinar, fiscalizar, verificar” os ditos. A quantidade de verbos severos e autoritários prova, em larga medida, a importância da instituição, popularizada por informar regularmente os portugueses de que os portugueses ingerem demasiados antidepressivos. As provas que faltavam encontram-se no BASE, o site dos contratos da administração pública: dado o dinheiro que nos custa, o Infarmed é realmente vital. Pelo menos, convém que o seja.

Descontados os gastos correntes e os gastos extraordinários cuja relevância não arrisco avaliar (exemplo: “um kit “knowltALL@ATR” _NPD5493002205”, 6.500€), só há 15 dias o Infarmed gastou 60 mil euros em assessores avençados para promover, cito, a “literacia na saúde”. Há um mês e pouco investiram-se quase 11 mil euros para “revestir as janelas do primeiro andar”. Quatro dias antes, 17 mil euros em “serviços de manutenção técnica” dos detectores de incêndio e das câmaras de vigilância. A 21 de Setembro, 7 mil euros em serviços de “design gráfico”. Em agosto, graças às férias, o Infarmed não gastou um cêntimo adicional. Mas julho fora uma festa, com 10 mil euros em avenças para, respirem fundo, a “contratação de serviços para apoio técnico ao funcionamento e desenvolvimento dos trabalhos da Comissão de Acompanhamento do Compromisso para a Sustentabilidade e o Desenvolvimento do SNS” (confere). E, note-se a espécie de ironia, com 75 mil euros em “serviços especializados de Comunicação, no âmbito da candidatura de Portugal à sede da EMA” (confere). Em julho, houve, entre minudências, 75 mil euros em “serviços especializados, para simplificação de tarefas e processos”, 11 mil euros em “serviços de clipping”, 100 mil euros em tralha jurídica e 20 mil em “serviços especializados, para realização de um estudo do impacto económico de uma eventual relocalização da EMA” (confere). E por aí afora, recuando aos saltinhos pelos meses e pelas sucessivas adjudicações.

A julgar pelos gastos, porém, o forte do Infarmed são as viagens. No BASE, embora misteriosamente limitadas ao período 2008-2014, existem 521 viagens dos senhores do Infarmed, sempre rumo a encontros, congressos e reuniões essenciais ao futuro da humanidade. À luz da física, é compreensível a recusa da maioria dos funcionários em se mudarem para o Porto: eles vivem em permanente mudança para Bruxelas, Estrasburgo, Londres ou Paris. Apenas não se compreende o argumento da família, que os referidos nómadas contemporâneos invocam de modo a fugir à deslocação para norte. Dada a quantidade de voos, escalas, táxis e hotéis, há ali desgraçados que não veem os filhos desde 2009.

Contas feitas, o episódio do Infarmed serve dois propósitos, ambos redundantes. O primeiro é mostrar os abismos de descaramento, demagogia e trafulhice a que o governo é capaz de descer. O segundo é lembrar que, apesar dos esforços do Infarmed, o país não tem remédio: ignoro se por manha ou criancice, toda a gente deseja acolher o Estado no quintal a título de dádiva, na presunção de que a proximidade ao entulho oficial constitui uma esperança e uma oportunidade. No máximo, conheço uns dezessete compatriotas que, caso pudessem, enviariam a administração pública em peso para a Papuásia, de resto a atitude própria de pessoas crescidas e saudáveis.

No fim, como de costume, as coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para justificar o barulho, cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo, 165 empregos criados do zero, o poder a soltar foguetes, o dr. Costa a soltar perdigotos e, à revelia dos alertas de certa instituição, os portugueses a tomarem toneladas de antidepressivos. E precisam de tomar ainda mais. 
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 25-11-2017

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