No fim, como de costume, as coisas ficarão
na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para justificar o
barulho e cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo.
Há tempos, o Porto, ou alguém
em seu nome, candidatou-se a receber em definitivo uma resma de burocratas
europeus, vulgo EMA. Esta semana, perdeu a candidatura. O governo, que começou
por decretar Lisboa o único ponto geográfico capaz de alcançar tamanha honra e em
seguida andou aos ziguezagues, decidiu agora compensar o Porto através da
cedência de uma resma de burocratas caseiros, vulgo Infarmed. O dr. Rui Moreira
ficou muito contente. Os funcionários do Infarmed, que consta habitarem lá em
baixo, não ficaram tão contentes. E o povo que opina sobre assuntos assim
desatou a discutir a legalidade ou a ilegalidade da decisão, os méritos e os
deméritos das duas cidades, as vantagens e as desvantagens da descentralização,
o cérebro do dr. Costa ou a falta dele.
Por mim, estou disposto a
aceitar que trezentos e tal funcionários públicos fresquinhos representam uma
enorme benfeitoria para a Invicta, que pelos vistos não tinha os bastantes.
Conseguem imaginá-los a cirandar pelos Aliados e pelos Clérigos ao pôr-do-sol?
A alma da Baixa vai desabrochar em flor. E os portuenses, cuja expectativa e
cuja gratidão são grandes, já saíram à rua aos magotes, a celebrar a novidade e
a agradecê-la aos céus, ao PS e a tudo o que é divino. Em suma, o Infarmed no
Porto parece uma ideia portentosa. Mas não quero concluir nada até perceber,
com a profundidade permitida por meia hora de consultas na “net”, o que é o
Infarmed.
E o que é o Infarmed? A
acreditar na Wikipédia, é um organismo estatal destinado a “regular e a
supervisionar” medicamentos, além de “regulamentar, avaliar, autorizar,
disciplinar, fiscalizar, verificar” os ditos. A quantidade de verbos severos e
autoritários prova, em larga medida, a importância da instituição, popularizada
por informar regularmente os portugueses de que os portugueses ingerem
demasiados antidepressivos. As provas que faltavam encontram-se no BASE, o site
dos contratos da administração pública: dado o dinheiro que nos custa, o
Infarmed é realmente vital. Pelo menos, convém que o seja.
Descontados os gastos
correntes e os gastos extraordinários cuja relevância não arrisco avaliar
(exemplo: “um kit “knowltALL@ATR” _NPD5493002205”, 6.500€), só há 15 dias o
Infarmed gastou 60 mil euros em assessores avençados para promover, cito, a
“literacia na saúde”. Há um mês e pouco investiram-se quase 11 mil euros para
“revestir as janelas do primeiro andar”. Quatro dias antes, 17 mil euros em
“serviços de manutenção técnica” dos detectores de incêndio e das câmaras de
vigilância. A 21 de Setembro, 7 mil euros em serviços de “design gráfico”. Em agosto,
graças às férias, o Infarmed não gastou um cêntimo adicional. Mas julho fora
uma festa, com 10 mil euros em avenças para, respirem fundo, a “contratação de
serviços para apoio técnico ao funcionamento e desenvolvimento dos trabalhos da
Comissão de Acompanhamento do Compromisso para a Sustentabilidade e o
Desenvolvimento do SNS” (confere). E, note-se a espécie de ironia, com 75 mil
euros em “serviços especializados de Comunicação, no âmbito da candidatura de
Portugal à sede da EMA” (confere). Em julho, houve, entre minudências, 75 mil
euros em “serviços especializados, para simplificação de tarefas e processos”,
11 mil euros em “serviços de clipping”, 100 mil euros em tralha jurídica e 20
mil em “serviços especializados, para realização de um estudo do impacto
económico de uma eventual relocalização da EMA” (confere). E por aí afora,
recuando aos saltinhos pelos meses e pelas sucessivas adjudicações.
A julgar pelos gastos, porém,
o forte do Infarmed são as viagens. No BASE, embora misteriosamente limitadas
ao período 2008-2014, existem 521 viagens dos senhores do Infarmed, sempre rumo
a encontros, congressos e reuniões essenciais ao futuro da humanidade. À luz da
física, é compreensível a recusa da maioria dos funcionários em se mudarem para
o Porto: eles vivem em permanente mudança para Bruxelas, Estrasburgo, Londres
ou Paris. Apenas não se compreende o argumento da família, que os referidos
nómadas contemporâneos invocam de modo a fugir à deslocação para norte. Dada a
quantidade de voos, escalas, táxis e hotéis, há ali desgraçados que não veem os
filhos desde 2009.
Contas feitas, o episódio do
Infarmed serve dois propósitos, ambos redundantes. O primeiro é mostrar os
abismos de descaramento, demagogia e trafulhice a que o governo é capaz de
descer. O segundo é lembrar que, apesar dos esforços do Infarmed, o país não
tem remédio: ignoro se por manha ou criancice, toda a gente deseja acolher o
Estado no quintal a título de dádiva, na presunção de que a proximidade ao
entulho oficial constitui uma esperança e uma oportunidade. No máximo, conheço
uns dezessete compatriotas que, caso pudessem, enviariam a administração
pública em peso para a Papuásia, de resto a atitude própria de pessoas
crescidas e saudáveis.
No fim, como de costume, as
coisas ficarão na mesma, com o Infarmed em Lisboa, uma sucursal no Porto para
justificar o barulho, cinco comissões inventadas para “articular” o arranjo,
165 empregos criados do zero, o poder a soltar foguetes, o dr. Costa a soltar
perdigotos e, à revelia dos alertas de certa instituição, os portugueses a
tomarem toneladas de antidepressivos. E precisam de tomar ainda mais.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
25-11-2017
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