Valdemar Habitzreuter
As gerações futuras farão um
estudo interpretativo de nossa época atual, assim como nós, atualmente,
interpretamos épocas passadas de como o ser humano encarava a vida, e o que é
destituído de sentido ou ainda nos é proveitoso.
A História é o lugar comum
onde o ser humano registra o seu modo de vida e vai se moldando conforme
compreende a si mesmo, calcado em fatos passados; dependente, pois, de uma teia
histórica que se estende ao longo do tempo.
O passado nos ensina, mas tão
somente se soubermos interpelá-lo à luz de um método interpretativo que nos
elucida o sentido dos fatos passados, e, dessa forma, talvez, trazê-lo renovado
ao nosso presente.
Os registros de fatos
históricos, pois, através da linguagem escrita, são as fontes onde podemos nos
apoiar e decifrar o significado histórico de cada época e compreender o modus
vivendi do homem, e ao mesmo tempo, inteirar-se de seu sentido e se ainda faz
sentido para nossa realidade atual.
Por exemplo, aludamos à
Reforma de Lutero cujo aniversário de 500 anos celebramos neste ano de 2017. O
que Lutero propôs, face às distorções emblemáticas da Igreja à qual pertencia?
Simplesmente isto: que a palavra da Bíblia fale por si mesma e toque a cada um,
crente em Deus; não deve ser monopólio de poucos a interpretação dos textos
sagrados como o era na Igreja católica até então.
Ademais, os registros bíblicos
foram efetuados em um passado remoto por autores que experimentaram a vida
daquela época, tanto em seu aspecto psicológico como social. Esses autores
tinham sua própria vivência religiosa (estado psíquico) inserida num
determinado contexto social. Tudo isso deve-se tomar em conta e trazer para os
tempos atuais o que o texto desses autores ainda nos pode falar e transmitir; é
por um exercício hermenêutico que chegamos à compreensão do sentido e verdades
aí ainda vívidas e úteis, e vivenciá-las em nossos dias, talvez mais
proficuamente do que os próprios autores... é o que Lutero fez; foi um
hermeneuta dos textos bíblicos e a partir daí disseminou-se a leitura da Bíblia
e, consequentemente, surgiram vários ramos de cristianismo...
Abordando outro episódio,
celebra-se hoje o Dia da Consciência Negra. O que vem a ser isso? Por que foi
instituído esse feriado? Talvez, nós brasileiros, não nos interessamos por um
esforço interpretativo de nossa História e nos esquecemos do que representou a
escravatura no Brasil desde o seu descobrimento, e que perdurou por mais de
três séculos.
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Monumento Zumbi dos Palmares, Rio de Janeiro, foto: Vinício Antônio Silva |
Aos olhos da atualidade, esta
faceta da História brasileira foi uma época horrenda em que era natural que
seres humanos fossem considerados e tratados como sem alma e usados como
animais para trabalhos escravos; isto é, submetidos à vida degradante, a
castigos e humilhações, sem remuneração e despojados de dignidade humana. É,
amigo leitor, faça um exame de consciência – já que hoje é o dia da Consciência
Negra – e estude os primórdios de nossa História brasileira e verás o absurdo
criminoso em que se calcou nossa colonização.
Infelizmente, essa mancha
teima em resistir e não sabemos ou não queremos interpretar o passado para nos
desvencilhar dessa mácula, pipocando cá e lá sentimentos de discriminação a um
povo que foi a grande força de sustentação do país naquela época.
Um viés interpretativo pode
nos transportar para aquela época e entender a situação econômica e social em
que se vivia, a partir mesmo dos países africanos onde eram arregimentadas as
pessoas que seriam transportadas para as Américas como escravos. Era comum e
natural naquela época o comércio de pessoas para melhorar a situação econômica
de países e poderosos tanto em solo africano como em terras descobertas além
mar. Assim, o poder dos poderosos deu sentido à escravatura... Aliás, a
escravatura era uma prática desde os primórdios da civilização.
Mas, a História por si mesma é
um processo interpretativo e corretivo, transmutando o sentido dos fatos
históricos ao carregar em seu lombo a dinâmica do tempo transformador. Fatos,
outrora com sentido, vão sendo analisados e avaliados no decorrer da História e
revestindo-se de roupagem atualizada e carregada de novo sentido. No caso da
escravatura no Brasil, uma avaliação histórica se processou, culminando também
numa reforma, substituindo seu sentido e o status quo do passado ao interpretar
a escravidão, então tida como natural, como uma aberração da natureza humana,
uma vez que escravizados e escravizadores pertenciam a uma só raça: a humana.
O interessante é que o feriado
de hoje, o da Consciência Negra, foi instituído através de uma lei para que os
brasileiros tivessem consciência do que representou a história dessa sofrida
gente que, mais do ninguém, trabalhou a fogo e ferro pelo Brasil. Não
precisávamos desse feriado, que mais demonstra uma divisão do que unidade em
nossa sociedade, e que pode até acirrar ainda mais os ânimos, acentuando o
racismo que permeia ainda disfarçadamente em nossa sociedade.
Mais útil seria a nós
brasileiros suscitar uma lei áurea individual que forjasse uma só alma, a alma
alvinegra brasileira e podermos olhar para o passado negro de nossa História, transportando-o
para o presente com um novo sentido: somos todos brasileiros precisando um do
outro... Assim, proferimentos discriminatórios tipo: “... as pessoas atravessam
a rua para a outra calçada ao nos ver...” não teriam mais lugar.
Título e Texto: Valdemar Habitzreuter, 20-11-2017
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