Maka Angola
De forma patética, o novo
ministro (mas velho secretário de Estado) das Relações Exteriores de Angola,
Manuel Augusto, afirmou mais uma vez que o país “não se moverá nas ações de
cooperação com Portugal (…) enquanto o caso [de Manuel Vicente - foto acima] não tiver um
desfecho”, adiantando que a solução seria entregar o processo à justiça
angolana, no âmbito do acordo de cooperação judiciária entre Portugal e Angola.
Além disso, Augusto também
proferiu palavras confusas sobre a razão de Estado e a submissão do poder
judicial à razão de Estado, demonstrando exemplarmente que os “novos”
democratas do governo não sabem verdadeiramente o que é o Estado Democrático de
Direito. Num Estado Democrático de Direito, o poder judicial só se submete à
Constituição e à Lei. A razão de Estado é um instrumento típico dos Estados
europeus absolutistas dos séculos XVII e XVIII, nada tendo que ver com as
modernas democracias. Ou melhor, que nada deveria ter que ver com as modernas
democracias…
Aliás, enquanto foi secretário
de Estado, Manuel Augusto habituou-se a observar a submissão portuguesa aos
interesses dos dirigentes angolanos. De facto, a justiça portuguesa tinha uma
longa tradição de deferência face ao poder político e, no caso de Angola, essa
deferência traduzia-se em arquivar todos os casos que dissessem respeito aos
líderes angolanos. Basta lembrar a decisão – tomada pela então diretora do
Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP – principal órgão de
investigação do Ministério Público português), Cândida Almeida – de não
investigar os indícios de fraude fiscal e branqueamento de capitais que
surgiram no âmbito da Operação Furacão (inquérito criminal dirigido ao sector
financeiro por fuga ao fisco) em relação a Isabel dos Santos. Ou o constante
arquivamento, por parte das autoridades judiciárias lusas, das queixas apresentadas
por Rafael Marques, fazendo eco da vontade do então presidente da República
Cavaco Silva, segundo o qual os assuntos de Angola deviam ser tratados em
Angola.
Durante anos a fio, o poder
judicial português foi cúmplice do mercenarismo político do governo de Lisboa
face a Luanda. Por isso, não é difícil compreender o espanto de Manuel Augusto
perante a mudança de atitude dos magistrados portugueses.
Até que ponto estamos perante
um mero epifenômeno, ou perante uma atitude estruturalmente nova do judiciário
português, ainda é uma questão em aberto. Mas o certo é que quer no Brasil, com
o caso Lava-Jato, quer em Portugal, com a Operação Marquês, em que o
ex-primeiro-ministro José Sócrates e o ex-primeiro banqueiro Ricardo Salgado
são acusados, parece existir algum ativismo judicial, saindo da típica letargia
subserviente das magistraturas lusófonas.
Vamos acreditar que as
magistraturas decidiram apenas obedecer à Constituição e à Lei, como deve ser.
O caso das acusações de
corrupção e branqueamento de capitais a Manuel Vicente, bem como a investigação ao anterior governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe,
são os reais testes acerca do empenho de João Lourenço em combater a corrupção.
Não são as detenções de um administrador da Autoridade Tributária e de um diretor
nacional do Tesouro – arraia-miúda – que comprovam esse empenho. É no confronto
com os interesses dos mais poderosos que se pode avaliar a fibra e a
determinação de Lourenço. E o novo presidente, até ao momento tão bem
encaminhado, parece agora patinar.
Por alguma estranha razão,
Angola quer transformar o caso de Manuel Vicente numa questão de afirmação da
soberania nacional e de proteção do Estado. Um erro.
Nenhum dos comportamentos
imputados a Manuel Vicente está ligado ao exercício de funções soberanas ou
sequer públicas.
A acusação a Manuel Vicente
refere-se ao tempo em que este era presidente da Sonangol, e não
vice-presidente da República, e teria pago a um procurador do Ministério
Público português para arquivar uma investigação que dizia respeito aos fundos
utilizados na compra de apartamentos no Estoril, Portugal.
Não está em causa nenhum ato
soberano, do Estado, nem sequer a atuação enquanto presidente de uma empresa
pública. O que está em causa é um ato privado de um cidadão que comprou uma
casa para uso particular.
Há obviamente uma confusão
conceptual na cabeça do ministro Augusto. Comprar uma casa em Portugal, mesmo
no Estoril, não é um ato de soberania do Estado angolano.
Estamos, portanto, a assistir
àquilo que Achille Mbembe – o insuspeito estudioso camaronês do
pós-colonialismo – chamava de “privatização sem precedentes de prerrogativas
públicas e da soberania”.
Quando as lideranças angolanas
falam sobre a soberania, estão a falar de uma “soberania privada”, e não da
soberania do Estado, e as imunidades que invocam referem-se às que consideram
vinculadas aos seus assuntos privados.
Pode dizer-se que o caso
Manuel Vicente e o tratamento político que lhe está a ser dado são
paradigmáticos de privatização de prerrogativas públicas, de privatização da
soberania, já que, em termos legais, os atos indiciados de Vicente não são atos
públicos, mas privados, e ele está a usar todo o mecanismo de governo para se
defender.
Sejamos claros: o caso de
Manuel Vicente não envolve a soberania de Angola, mas sim – e tão-somente – a
sua defesa privada. E para garantir a sua impunidade, recorre-se a expedientes
de enorme abuso de poder.
Assim, se o ministro das
Relações Exteriores e, em última análise, o seu chefe João Lourenço insistirem
em recorrer aos mecanismos públicos do Estado para defender uma operação
privada de um antigo dirigente, estarão a demonstrar que continua a não existir
Estado de Direito em Angola, nem vontade real de combater a corrupção,
mantendo-se a soberania nacional nas mãos dos interesses privados da elite
dirigente.
Título, Imagem e Texto: Maka Angola, 30-11-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-