Aparecido Raimundo de Souza
Tompson de Panasco.
NA
NE
NI
NO
NUMA LINDA MANHÃ de setembro, eu me
debrucei no peitoril da janela e fiquei a olhar para o tempo. Deveria ter meus
dez anos de idade. Talvez um pouco mais. Todavia, não passava dos doze. Como
gostava de me pôr à janela e espiar os pássaros voejando pelo infinito azul,
numa espécie de sinfonia lindamente pastoril. Cedinho, antes das sete, depois
do café, me punha a correr desembestado pelo quintal e estancar, na beira da
linha, para esperar o trem de ferro passar. O comboio sempre passava naquele
horário e nunca atrasava.
Mamãe, nessas horas, ficava na cozinha, aos gritos,
preocupada. A casa onde morávamos era quase às margens do leito ferroviário.
Uns trezentos metros. O apito estrídulo da “Maria fumaça” me transportava para
um mundo encantado, repleto de sonhos coloridos. E aquela nuvem andante de
fumaça expelindo faíscas vermelhinhas produzidas pela queima da lenha
incandescente agia dentro de mim como uma essência poderosa. Um sustentáculo poderoso que me fazia perder
completamente do contagiante das coisas em derredor. Esquecia igualmente dos
momentos eternos da vida terrena e das coisas materiais. Nessas horas, criava
dentro da mente um mundo imaginário, um universo só meu. Ninguém entrava. Ali
eu era o soberano incontestável. Senhor de todas as vontades. Deixava de ser o
menino amado pelos familiares à base de carinhos e afagos construídos a
quimeras metamorfoseadas. E me transformava num herói.
O mártir sem causa, tipo Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes, que lutava contra (não moinhos de ventos), monstros gigantes e
salvaguardava as cidades, juntamente com seus habitantes das garras maléficas
ou de qualquer outra espécie de feitiçaria que estivesse rondando perto. Era
como uma viagem fantástica ao reino do “faz de conta”. Nesse balanço, mormente
do “faz de conta”, eu era perfeito e pleno, e melhor que isso, completamente
feliz. Próspero e ditoso, venturoso, abençoado e opulento dentro da pequenez
dos dias que circundavam ao meu redor. Naquele mundo de árvores frondosas, de
castelos encantados, de príncipes e princesas, onde riachos com águas
cristalinas refletiam um céu de nuvens brancas e sol maravilhoso. Naquele
pedaço de chão de terra batida, não existia solidão.
Nem no tocar do vento, nem no cantar dos pássaros, menos
ainda no ranger das rodas das carroças, ou no bater forte das porteiras. Em
nada se via, ou se sentia, a presença da tristeza. Tampouco, se cogitava (no
rosto dos homens que trabalhavam na lavoura, para papai, ou nas mulheres que
andavam com crianças recém-nascidas penduradas nos pescoços de suas mães), da
tal da saudade. Não existia absolutamente nada que manchasse, ou que mesclasse
aquele paraíso angelical. Talvez porque essa bem-aventurança só existisse
dentro de mim. E, sendo assim, força nenhuma vinda de fora conseguia amalgamar
a pureza virginal dos meus poucos anos de existência.
Hoje, pois é, hoje (tantos anos passados, homem feito,
responsabilidade bastante grande com a vida), novamente me ponho à velha e
querida janela do meu ontem e fico a olhar para o tempo. Percebo que não é mais aquela linda manhã de
setembro. Nem a janela que nesta hora me
recepciona, é a que se me acolhia com seu peitoril radiante. Olhando através
dela, não vejo os pássaros de outrora, nem o céu azul, sem manchas, nem a
sinfonia rural dos tempos de menino de calças seguras a suspensórios. Não
consigo, por mais que estique os olhos, rever a velha “Maria fumaça” apitando
lá adiante, na curva, nem escuto a mamãe furiosa e apavorada, ralhando, cheia
de medos que me acontecesse alguma desgraça junto aos trilhos.
Não me repego mais correndo desembestado por entre os pés de
cana, e de extensos cafezais, pisando aparvalhadamente as plantações rasteiras
dos caminhos tortuosos que levavam a desembocar numa espécie de funil, que, por
sua vez, se abraçava para uma estrada empoeirada onde passava um ônibus pequeno
e engraçado (duas vezes por dia) transportando o pessoal até a vila. Não
consigo atinar, na mesma emoção, com o meu mundinho do “faz de conta”, onde
figueiras e mangueiras acobertavam castelos encantados, com príncipes e
princesas povoando meu espaço de guri sapeca e mal desabrochado para a vida de
amanhã incerta.
Percebo, surpreso e admirado, nessa visão deturpada ante os
meus assombros e tremeliques, que lá fora, não muito longe, aliás, bem próximo,
as decepções se multiplicaram. Um leque de dissabores infindáveis termina logo
ali (um tiro de espingarda), num infausto contraste. Estupefato, questiono à
minha alma frangalhada, numa espécie de terror súbito - onde estão todas
aquelas coisas lindas do meu tempo de menino? Para onde foi à velha “Maria
fumaça” com seus apitos estridentes e iracundas brumas negras de fumaças
desenhando figuras engraçadas se misturando a aridez dos campos verdejantes?
Por que desapareceram desse meu infinito as coisas simples que vinham enfeitar
de sonhos perfeitos as minhas irrupções antigas vistas da deteriorada janela?
Se pelo menos fosse uma manhã de setembro e ela tivesse o encanto de reavivar
decompostas quimeras adormecidas...
Se pelo menos eu não tivesse crescido. Se ao menos restasse
daqueles anos de infância um quadro qualquer de recordação viva, uma moldura
esmaecida que pudesse olhar longamente e esquecer esse presente esmagante,
estroina, poluído pelo pretume obumbrado dos anos que se sepultaram nas covas
do além. Quem sabe conseguisse trocar os pólos negativos das frustrações pelos
positivos da Esperança e da Felicidade plenas. Quem sabe, ainda, realizasse
outros tantos devaneios criados pela improbidade do coração, até agora, longe,
bem distante da realidade, sabe se lá por que, continuam estacionados, parados,
estancados, como machucados que não saram nem sinalizam cicatrizar.
Confinado como um doente terminal, sem forças para reagir,
frenteado para muralhas inquebrantáveis e intransponíveis do destino, aqui me
encontro. Sozinho, vazio por dentro, oco por fora. Acorrentado aos estropícios
impostos pela velhice imperdoável. Nessa solidão vil, de mil tentáculos, tenho
a impressão de que continuo criança. Não aquele raquítico indefeso, pirralho,
boquiabertado e poderoso, que se punha à janela e ficava a olhar para o tempo.
Um infante amadurecido, sem vida, sem esperança, sem convicção no amanhã. O mundo imaginário que me aflora à mente, não
é o de águas passadas. Vislumbro, na verdade, um lugar esquisito, estranho,
atípico, forasteiro, cheio de inquietações, onde todos procuram se esmagar uns
aos outros. Nesse mundo que me contempla, não existem resquícios de
felicidades, nem “Maria fumaça”. Muito menos aquela linda manhã de setembro
quando me punha à janela (Meu Deus! Nessa que me encontro agora), sem pressa e
sem medo, feliz, despreocupado, e ficava a olhar, infatigável e caloroso,
indefeso e buliçoso para o tempo.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de
Sertãozinho, interior de São Paulo. 30-3-2018
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