Aparecido Raimundo
de Souza
QUANDO CHOVE, PARA TUDO. Pelo menos na minha rua. E atentem que estou
fazendo referência à avenida principal, a que corta o bairro, de um extremo a
outro. A água é tanta, mas tanta, que nenhum carro pequeno atreve a se
aventurar arriscando a vida útil do veículo em meio à enxurrada lamacenta que
desce de dois morros em derredor da via principal. O mais engraçado e jocoso. A
novela não é de hoje. Tem mais tempo no ar que a escolinha de atores das tardes
chatas e repetitivas da Rede Globo.
A confusão igualmente vem de longa data. Desde os tempos em que minha
avó andava por aqui numa bicicleta de uma roda só. Bastou o tempo fechar a
cara, franzir o cenho, por meia hora, que seja, e o complexo demográfico, em
peso, se perde comprometido, envolvido, impossibilitado, hipotecado e, claro,
acorrentado num intransitável, embaraçoso e improbo. Com essa perturbação
efervescente da ordem, as lojas fecham as portas, os transeuntes se ilham à
procura de abrigo e o trânsito, o trânsito se torna um salve-se quem puder no caótico
do engarrafamento.
Tudo toma forma de arrocho, desses bem atados e amarradiços. Grosso modo, vira um enorme nó. Nó de nó górdio o que é pior. O folhetim é o
mesmo do idêntico ao anterior. Sempre! Os atores, idem. Nunca se revezam. No
cotidiano das putarias entra prefeito, sai prefeito e o quadro horripilante não
muda as tintas. Nem as promessas que os safados e pilantras fazem (geralmente
em épocas eleitoreiras), trazem alguma coisa de novo, de útil ou de
diferenciado. Nessas ocasiões em que a raia miúda precisa ir às urnas, à força
bruta de uma democracia de merda, de um estado de direito apodrecido pela
corrupção, vejam, caros leitores e amigos, são as mesmas histórias, as mesmas
promessas, as mesmas fuças lendárias de sempre que voltam à cena e entram com
tudo no picadeiro.
Nada se modifica se altera ou se transforma... e o povo sofrido, pisoteado, impaciente, como
sempre, de mãos atadas, os pés amarrados, venda nos olhos, e inconsequentemente
a massa disforme encabeçada pelo Zé Povinho tomando no meio dos cornos, para
não mencionar um lugar mais apropriado a essas enfiadas de bananas, como por
exemplo, no rabicó esbagaçado e literalmente pandarecado do desditoso.
Resumindo a disfunção erétil, senhoras e senhores. A galera numa
hipótese diagnóstica de quem vê a coisa de fora: é o velho mal que não sara,
que não cura, que não debela que não cicatriza. E não estanca o sangue dos
inocentes para que a hemorragia cesse de vez.
Na última chuvarada que cobriu o azul infinito, uma senhora em idade bastante
avançada se machucou caindo num bueiro aberto quase defronte ao portão aqui de
casa.
Foi parar a criatura, no hospital com sérias escoriações. Mas está bem.
Sobreviveu meio que a trancos e solavancos. Conseguiu sair se safando com vida,
graças ao bom Pai. Para alegria e regozijo de toda a confraria, fora de perigo.
Pois bem. Como em todas as situações, sempre surgem loucos pirados no pedaço
querendo aparecer. Devo registrar que em razão disso, tivemos surpresas várias.
Alguns sem juízo, e, portanto, mais atrevidos se fanfarrearam a se exibirem aos
exploradores de eventos.
E para mostrar que nada temiam se atiraram ao incerto das águas furiosas
que mais se assemelha a uma cachoeira desenfreada à flor da natureza em
polvorosa. Parecia Foz do Iguaçu. No derradeiro temporal que se abateu por
aqui, tipo “marés com ímpetos de destruição”, além dos barracos que desabaram,
levando consigo fogões, geladeiras, televisores, sofás e camas, houve um caso
em que um cadeirante quase chegou a óbito. Faltou pouco para se aproximar de
São Pedro com seu barquinho de madeira envelhecida.
Careceu abandonar seu assento sobre as duas rodas no meio da praça e
voltar carregado por quatro passantes generosos, entre outros fatos de
importância suma, que rascunharam, sobremaneira, o desarranjo impiedoso que se
alastrou sobre a pequena e bucólica cidade. Passada a chuva, ressurgido o sol
ainda que anêmico interceptado e detido o medo, refreadas as tensões, as coisas
todas (ou quase) voltaram ao normal.
Ao habitual fragilizado, debilitado, depauperado. Ao comum do dia a dia,
as incertezas do amanhã sempre desconhecido. E novamente entraram no jogo das
precariedades, os bens vestidos, os caras de pau, os safardanas envernizados,
os larápios de colarinho branco, os enganadores dos Manés acorrentados em seus
cotidianos e aos artifícios de promessas novas, de juramentos que nunca serão
cumpridos.
Quando outra vez e novamente vier à chuva, o velho filme voltara em
cartaz, a preços altos. No mesmo terço, o picadeiro, no circo montado no
campinho de futebol ao lado na matriz se encherá até as bordas de veteranos
palhaços e suas peraltices sem nexo. A preços abusivos, imoderados e guindados
às exorbitanciedades. E as águas, caros leitores? As benditas continuarão
correndo, intermitentemente, pelos “long chemins” em busca da trilha dos sonhos
de todos nós, de todos nós, pobres e indefesos mortais a mercê do estrangeiro
inesperado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro.
11-7-2019
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