Aparecido Raimundo de Souza
ELE E ELA SE ENCONTRAM
perto de uma pilha de roupas que acabara de sair da máquina de lavar. Entabulam
conversação:
- Gostei de ver – diz Ele, embevecido.
- Você está linda! Diria mais: divinal!
Ela se acha a tal e sorri faceira:
- Muito obrigada.
Ele se irrita. Reclama:
- É assim que me retribui? Chego aqui, encho a sua bola e, em troca, a
senhorita me dá um “muito obrigada” mais frio que congelador de geladeira
recém-posta em uso?
Ela franze o cenho diante dessa expressão até então desconhecida de seu
vocabulário:
- Mais frio que congelador de geladeira posta em uso? De onde você tirou
essa coisa tão chula, ridícula e sem graça? O que exatamente queria que eu
fizesse?
Ele se abre num sorriso franco e se empertiga todo antes de responder:
- Ora, que me desse um beijo, um abraço apertado, ou me acompanhasse até
ali na porta de minha casa... estamos como pode ver, a dez ou doze passos
dela...
Ela responde evasivamente interpondo nova indagação:
- Por que eu faria isso?
Ele, muito sério:
- Para sentarmos debaixo de minha janela e conversarmos um pouco...
Ela, desdenhando:
- Engraçadinho...
Ele, alegre e com segundas intenções em seus olhos:
- Mamãe também acha, apesar de eu ser redondinho e meio preto.
Ela rebate:
- Você se acha redondinho?
Ele, chateado:
- Na verdade, não. Mas meio preto, com certeza. Ao contrário de você:
nova em folha, impecável, sem uma ruga ou marca de nascença. Não vislumbro um
machucado, tampouco um arranhão. Aposto que ainda não levou...
Ele para antes de completar a frase. Ela, esperta, insiste:
- Não levei o quê?!
Ele, desconversando:
- Deixa pra lá...
Ela, ficando com o rosto vermelho:
- Fale de uma vez. Não atice a minha curiosidade. Começou, desembucha,
vá em frente. Doa a quem doer.
Ele prefere se manter calado. Inventa uma desculpa esfarrapada:
- Esqueça. Pensei alto.
Ela, contudo, persiste partindo para a zanga:
- Fale ou estraçalho seus pensamentos em dois...
Ele titubeia. Não sabe qual poderá ser a reação dela:
- Promete não me mandar para o espaço?
Ela se coça em demonstração de um princípio de raiva iminente:
- Ficarei fula da vida se não vomitar de uma vez o que pretendia dizer.
Estou esperando... sou toda ouvidos...
Ele dá uma risada gostosa. Ela se morde por dentro, enfurecida:
- Posso saber qual o motivo da graça?
Ele muda o tom da prosa:
Ela parece entrar na dele. Indaga curiosa:
- O que há com minha pele?
Ele, esperto, tenta levar a conversa para outro caminho:
- Simplesmente maravilhosa. Deslumbrante. Parece seda.
Ela ri faceira, diante desse galanteio. Saliente, se gaba enquanto solta
os cabelos.
- Meu amo e senhor soube escolher...
Ele, pejorativo:
- Dá para perceber.
Ela se faz altiva. Sobe nos saltos, como se arrotasse superioridade:
- Ao menos concorde comigo: o cara tem gosto apurado. Sabia que até na
hora do meu banho meu patrão não me larga?
Ele junta as sobrancelhas em admiração e surpresa:
- Deixa ver se entendi direito. Ele lhe dá banho?
Ela gira sobre o próprio corpo antes de responder. Fecha os olhos como
se viajasse no que diria a seguir:
- Claro! Por que todo esse espanto?
Fique sabendo, meu caro, que não é com qualquer sabãozinho de prateleira
de supermercado. Meu senhor, usa cremes finos. Ensaboa todas as minhas
curvinhas e reentrâncias. Só produtos de primeira, marcas famosas. Ele comprou
recentemente uns perfumados que vêm em umas caixinhas lindas e mimosas. Dá até
pena jogar as embalagens no lixo. Alto lá: você está me engabelando. Não riu
por causa disso. Fale! Você dizia, a pouco, que apostava - apostava o que, ou
em quê?
Ele fica sério, de repente:
- Quer mesmo saber?
Ela insiste pertinaz e aferrada:
- Lógico.
Ele dissimula:
- Aposto que... melhor deixar pra lá.
Ela então se agasta, encolerizada. Realmente seu semblante demonstra uma
intensa irritação desfigurada e fora do comum. E não só isso. Embravece
igualmente os modos, perturbada:
- Você tem mãe? Gosta dela? Bote
para fora o que tem aí na ponta da língua. Estou perdendo a paciência. Estou
pegando ar... deu pra perceber? Estou pegando ar. Expeli de uma vez, seja lá
que porcaria for...
Ele procura uma maneira de dizer o que tem entalado, sem melindrar a
jovem:
- Ia dizer que você ainda não levou ferro. Como vê uma asneira, uma
bobagem...
Ela, mais calma.
- Realmente nunca. Aliás, saiba meu caro, não preciso de ferro.
Com essas palavras Ele dá uma rata:
- Que mal pergunte: ele não lhe amassa nunca?
Ela sustenta a pergunta e responde a altura:
- Meu senhor deita e rola a seu bel prazer. Da mesma forma, pula, salta,
faz pirueta, cambalhoteia, mas veja bem. Sou daquelas que lavou, estou nova e
pronta para outra. Não preciso de ferro. Ao contrário de você. Se o ferro der
uma encostadinha no seu botão, aposto que é capaz de perder a linha...
Dessa vez quem sai do sério é Ele:
- O que está insinuando?
Ela debochada, pilheriando:
- Nada. Fiz apenas uma pequena observação.
Novamente Ele volta a sair do estado normal. Sente a sua moral
encarniçada. As feições de fecham meio que escandalizadas. Enfurecido,
abrasado, solta o verbo, ou melhor, rasga o verbo. O verbo nessa hora se faz
carne zangada.
- Está me chamando de veado? Bicha louca, boiola, ou algo parecido à
figura de um efeminado? - Olha só quem fala: sua piranha desqualificada.
Vagabunda de brechó de um e noventa e nove.
Ela não deixa por menos. Responde a altura, açulada, ciscando pior que
galo no cio.
- Posso ser vagabunda de brechó de um e noventa e nove, mas espia, olha
aqui, seu besta. Tenho selo de qualidade. Selo entendeu? E você? Aponte algum
parente de marca! Cadê a sua postura, a sua etiqueta?
- Me enganei com sua pessoa. Você é uma safada. Vaga...
Ela perde, de vez, a compostura e parte com tudo para cima do sujeito.
Ele, esperto, para não levar uns tabefes, até porque Ela é maior que Ele em
postura e tamanho, corre com o rabinho entre as pernas e se refugia dentro de
sua casa. Desta vez, o coitado do Botão não se põe à janela. A Camisa do lado
de fora, em plena calçada, todavia, subindo pelas paredes, trepada nas
tamancas, solta a língua, deixando as rédeas soltas. Grita:
- Botão sem vergonha. Frouxo. Você precisa arranjar uma boa agulha que
lhe costure os ossos. Saiba que eu sou uma camisa fina, de bom corte, além de
marca famosa e conhecida nas boas lojas do ramo. E você? - Você, um botãozinho mixuruco que nem nome
tem...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de
Freitas, no Rio de Janeiro. 28-6-2019
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