domingo, 23 de junho de 2019

[As danações de Carina] De um pedaço de mim que nunca morre (parte QUATRO): Piano In The Dark

Carina Bratt

Hoje desperto com a impressão de estar ouvindo o piano de tia Walquíria tocando uma música. Impossível! Definitivamente impraticável essa ação. Tia Walquíria se foi do meio de nós. Virou estrela brilhando no friozinho mormacento da noite, se fez efélides na pele suave do firmamento. Por outra ótica, além dela, ninguém mais, por aqui, sabe sequer como chegar perto do instrumento. Ainda mais tocar alguma coisa. Por cima, para piorar minha cabeça, alguma coisa clássica. A composição rítmica que chega até meus ouvidos e invade meu quarto e não só isso, preenche todos os cantos disponíveis dentro deste aposento, não é minha conhecida. Nem tia Walquíria, quando viva, se prestava a esse tipo de melodia. Parece alguma coisa de Mozart misturada com Chopin, ou sei lá, Schubert.


Olho o relógio de pulso que deixo ao meu lado, descansando num criado-mudo junto com outros objetos pessoais. Quatro e quinze da manhã. Cedo demais. O som do piano, todavia, continua vindo alto e pelo horário, cobre literalmente quaisquer outros rumores que possam, àquela hora da madrugada, estar sendo produzidos, seja por vovô Silvério em sua velha cadeira de balanço ou vovó Priscila, na cozinha. Anda que vovó Priscila tivesse com a Marilza a tiracolo. Marilza trabalha como se lidasse com ovos e a gente só toma consciência da sua presença, se for até a copa fazer alguma coisa, como beber água, tomar um cafezinho ou beliscar um tira-gosto sendo fritado. Certo que todos eles, como também os peões e suas esposas, nos casarios ao lado, levantem-se com as galinhas (exceto eu e Chiquinha) tudo ó mais é pura mudez e afasia. Em face daquele horário, conclusivamente, eu devo estar sonhando.

Pelo sim, pelo não, melhor tirar a coisa a limpo. Em pratos não sujos. Pulo da cama. Visto a parte de baixo do pijama (tenho mania de dormir de sutiã e calcinha), calço os chinelos, e, antes de destrancar a porta para o corredor que acessa o restante da moradia, afasto as cortinas e abro uma banda da janela. Espio. A claridade do novo dia apontando lá longe, de mansinho, faz crescer os contornos das coisas existentes. Vislumbro, no quintal imenso, galinhas e pintinhos ciscando, os cachorros deitados, esparramados em longas madornices aos pés do paiol.  Entrevejo as cercas de arames, o curral, os cavalos, e olhando com mais acuro para a outra banda, as vacas, em desalinho, na pastagem quase às margens do Rio Belém.

Saio vagarosa, sem pressa, meio que atarantada. A composição continua sem interrupção na sua entonação expressiva e eloquente. Seja quem for sentado naquele piano, conhece bem as teclas e o que executa. Sua maestria se faz inimitável. Passo pela cozinha. Dou uma parada básica. Tempo bastante para perceber que o fogo na madeira e a fumaça do fogão à lenha ainda não acordaram a chaminé. Empurro o portal do quarto de Chiquinha. Ela e a mãe viajam no refrigério de uma inércia imperturbável. Sigo como uma gata arisca à caça de um camundongo. A combinação harmoniosa segue a sua trajetória inverossímil. Passo pela saleta e a cadeira de vovô também está afeita ao descanso. No mesmo tom depauperado e empalidecido, a rádio vitrola e o cuco emparedado, ressoam num desmaio consumadamente aquebrantado.

É agora. Meu Deus! É agora. Mais dois passos. Dois passos apenas e descubro, ao vivo e em cores, quem está abancado no piano. Todavia, atravanco pressurosa, ansiosa, agitada, impaciente, como se temesse ver, de repente, o que seria impossível, para nós, seres humanos. O piano não dá trégua. Conserva seu repertório vivo, pertinaz, obstinado, contínuo, estonteante. Mesmo daqui, não distingo se Chopin, Beethoven, Ravel ou Debussy. A filarmonia é linda. Maravilhosa. Inebriante. Refrigera a alma, acalma, apazigua, reconcilia o espírito. Destramelo e escancaro a janela da salinha de vovô. A manhã se faz linda, com a esvoação agitada de pássaros os mais diversos em alegres pipios e regorjeios sobre as árvores que enfeitam a quinta, tudo isso delineado no mesmo compasso da orquestração saída do piano. Crio, enfim a coragem necessária. Afrouxo o medo. Enfrento os poucos passos faltosos e encaro, finalmente, o recinto com o piano que a tia Walquíria, tão magistralmente tocava. Por tudo quanto é mais sagrado! O que ali, nesse momento excelso meus olhos veem?!


Título e Texto: Carina Bratt, de São Paulo, Capital. 23-06-2019

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