Carina Bratt
Hoje desperto com a impressão
de estar ouvindo o piano de tia Walquíria tocando uma música. Impossível!
Definitivamente impraticável essa ação. Tia Walquíria se foi do meio de nós.
Virou estrela brilhando no friozinho mormacento da noite, se fez efélides na
pele suave do firmamento. Por outra ótica, além dela, ninguém mais, por aqui,
sabe sequer como chegar perto do instrumento. Ainda mais tocar alguma coisa.
Por cima, para piorar minha cabeça, alguma coisa clássica. A composição rítmica
que chega até meus ouvidos e invade meu quarto e não só isso, preenche todos os
cantos disponíveis dentro deste aposento, não é minha conhecida. Nem tia
Walquíria, quando viva, se prestava a esse tipo de melodia. Parece alguma coisa
de Mozart misturada com Chopin, ou sei lá, Schubert.
Olho o relógio de pulso que
deixo ao meu lado, descansando num criado-mudo junto com outros objetos
pessoais. Quatro e quinze da manhã. Cedo demais. O som do piano, todavia,
continua vindo alto e pelo horário, cobre literalmente quaisquer outros rumores
que possam, àquela hora da madrugada, estar sendo produzidos, seja por vovô
Silvério em sua velha cadeira de balanço ou vovó Priscila, na cozinha. Anda que
vovó Priscila tivesse com a Marilza a tiracolo. Marilza trabalha como se
lidasse com ovos e a gente só toma consciência da sua presença, se for até a
copa fazer alguma coisa, como beber água, tomar um cafezinho ou beliscar um
tira-gosto sendo fritado. Certo que todos eles, como também os peões e suas
esposas, nos casarios ao lado, levantem-se com as galinhas (exceto eu e
Chiquinha) tudo ó mais é pura mudez e afasia. Em face daquele horário,
conclusivamente, eu devo estar sonhando.
Pelo sim, pelo não, melhor
tirar a coisa a limpo. Em pratos não sujos. Pulo da cama. Visto a parte de
baixo do pijama (tenho mania de dormir de sutiã e calcinha), calço os chinelos,
e, antes de destrancar a porta para o corredor que acessa o restante da
moradia, afasto as cortinas e abro uma banda da janela. Espio. A claridade do
novo dia apontando lá longe, de mansinho, faz crescer os contornos das coisas
existentes. Vislumbro, no quintal imenso, galinhas e pintinhos ciscando, os
cachorros deitados, esparramados em longas madornices aos pés do paiol. Entrevejo as cercas de arames, o curral, os
cavalos, e olhando com mais acuro para a outra banda, as vacas, em desalinho,
na pastagem quase às margens do Rio Belém.
Saio vagarosa, sem pressa,
meio que atarantada. A composição continua sem interrupção na sua entonação
expressiva e eloquente. Seja quem for sentado naquele piano, conhece bem as
teclas e o que executa. Sua maestria se faz inimitável. Passo pela cozinha. Dou
uma parada básica. Tempo bastante para perceber que o fogo na madeira e a
fumaça do fogão à lenha ainda não acordaram a chaminé. Empurro o portal do
quarto de Chiquinha. Ela e a mãe viajam no refrigério de uma inércia
imperturbável. Sigo como uma gata arisca à caça de um camundongo. A combinação
harmoniosa segue a sua trajetória inverossímil. Passo pela saleta e a cadeira
de vovô também está afeita ao descanso. No mesmo tom depauperado e
empalidecido, a rádio vitrola e o cuco emparedado, ressoam num desmaio
consumadamente aquebrantado.
É agora. Meu Deus! É agora.
Mais dois passos. Dois passos apenas e descubro, ao vivo e em cores, quem está
abancado no piano. Todavia, atravanco pressurosa, ansiosa, agitada, impaciente,
como se temesse ver, de repente, o que seria impossível, para nós, seres
humanos. O piano não dá trégua. Conserva seu repertório vivo, pertinaz,
obstinado, contínuo, estonteante. Mesmo daqui, não distingo se Chopin,
Beethoven, Ravel ou Debussy. A filarmonia é linda. Maravilhosa. Inebriante.
Refrigera a alma, acalma, apazigua, reconcilia o espírito. Destramelo e
escancaro a janela da salinha de vovô. A manhã se faz linda, com a esvoação
agitada de pássaros os mais diversos em alegres pipios e regorjeios sobre as
árvores que enfeitam a quinta, tudo isso delineado no mesmo compasso da
orquestração saída do piano. Crio, enfim a coragem necessária. Afrouxo o medo.
Enfrento os poucos passos faltosos e encaro, finalmente, o recinto com o piano
que a tia Walquíria, tão magistralmente tocava. Por tudo quanto é mais sagrado!
O que ali, nesse momento excelso meus olhos veem?!
Título e Texto: Carina Bratt, de São Paulo, Capital. 23-06-2019
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