Sandro Magister
Desde que veio a público em 17 de junho, o
documento base – ou “Instrumentum laboris” – do sínodo amazônico teve muitas
reações críticas devido à anomalia de sua implantação e suas propostas,
comparadas a todos os sínodos que o precederam.
Mas a partir de hoje tem mais.
Quem está acusando o documento de heresias e apostasia é um cardeal, o alemão
Walter Brandmüller [foto], de 90 anos, historiador da Igreja, presidente do Pontifício
Comitê de Ciências Históricas de 1998 a 2009 e co-autor, em 2016, do famoso
“dubia” sobre a interpretação e aplicação de “Amoris laetitia”, que o Papa
Francisco sempre se recusou a responder.
Aqui está o seu “J’accuse”,
tornado público hoje, dia 27 de junho, em todo o mundo e em vários idiomas
.
Na Kath.net o texto original
em alemão: “> Eine Kritik des “Instrumentum Laboris” für die Amazonas-Synode
Uma crítica ao “Instrumentum laboris”
para o sínodo da Amazônia
de Walter Brandmüller
Introdução
De fato, pode causar espanto
que, em contraste com as assembleias anteriores, desta vez o sínodo dos bispos
se ocupe exclusivamente de uma região da terra cuja população é apenas a metade
daquela da Cidade do México, ou seja, 4 milhões. Isto também causa suspeita no
tocante às verdadeiras intenções que alguns gostariam de ver implementadas
sub-repticiamente. Mas, acima de tudo, devemos nos perguntar quais são os
conceitos de religião, de cristianismo e de Igreja que são a base do
recém-publicado “Instrumentum laboris”. Tudo isso será examinado com o apoio de
elementos individuais do texto.
Por que um sínodo nessa
região?
Para começar, precisamos nos
perguntar por que um sínodo de bispos deveria tratar de temas que — como é o
caso de três quartos do “Instrumentum laboris” — têm só marginalmente algo
relacionado com os Evangelhos e a Igreja. Obviamente, que a partir deste sínodo
de bispos, realiza-se uma intromissão agressiva em assuntos puramente mundanos
do Estado e da sociedade do Brasil. Há que se perguntar: o que a ecologia, a
economia e a política têm a ver com o mandato e a missão da Igreja?
E acima de tudo: que
competência profissional e autoridade tem um sínodo eclesial de bispos para
emitir declarações nesses campos?
Se o sínodo dos bispos
realmente o fizesse, isso constituiria uma invasão e uma presunção clerical,
que as autoridades estatais teriam todos motivos para repelir.
Sobre as religiões naturais
e a inculturação
Há outro elemento a se levar
em conta, que é encontrado em todo o “Instrumentum laboris”: vale dizer, a
avaliação muito positiva das religiões naturais, incluindo práticas curativas
indígenas e similares, bem como práticas e formas de cultos mítico-religiosos.
No contexto do chamado à harmonia com a natureza, fala-se até de diálogo com os
espíritos (nº 75).
Não é apenas o ideal do “bom
selvagem” esboçado por Rousseau e pelo Iluminismo, que aqui é comparado com o
decadente homem europeu. Essa linha de pensamento vai além, até o século XX,
culminando com uma idolatria panteísta da natureza.
Hermann Claudius (1913) criou
o hino do movimento operário socialista: “Quando andamos lado a lado …”, e numa
estrofe se lê: “Verde das bétulas e verde das sementes, que a velha Mãe Terra
semeia com as mãos cheias, com um gesto de súplica para que o homem se torne
seu … “. Vale notar que este texto foi posteriormente copiado no livro de
cânticos da Juventude Hitlerista, provavelmente porque correspondia ao mito do
“sangue e solo” nacional-socialista. Esta proximidade ideológica deve ser
enfatizada: esta rejeição anti-racional da cultura “ocidental” que sublinha a
importância da razão, é típica do “Instrumentum laboris”, que fala
respectivamente da “Mãe Terra” no n. 44 e do “grito da terra e dos pobres” no
n.101.
Consequentemente, o território
– isto é, as florestas da região amazônica – pasmem, vem até declarado como um
“locus theologicus”, uma fonte especial de revelação divina. Nela haveria
lugares de uma epifania em que se manifestam as reservas de vida e sabedoria do
planeta e que falam de Deus (nº 19). Além disso, a conseqüente regressão do
Logos ao Mythos é elevada a um critério do que o “Instrumentum laboris” chama
de inculturação da Igreja. O resultado é uma religião natural com uma máscara
cristã.
A noção de inculturação é aqui
virtualmente distorcida, pois na verdade significa o oposto do que a Comissão
Teológica Internacional havia apresentado em 1988 e diferente do que havia
ensinado anteriormente o decreto “Ad Gentes” do Concílio Vaticano II, sobre a
atividade missionária da Igreja.
Sobre a abolição do
celibato e a introdução de um sacerdócio feminino
É impossível esconder o fato
de que esse “sínodo” visa particularmente implementar dois dos projetos mais
ambicionados e que nunca foram implementados até agora: a abolição do celibato
e a introdução de um sacerdócio feminino, a começar por mulheres diáconas. Em
todo caso, trata-se de “levar em conta o papel central que as mulheres
desempenham hoje na Igreja da Amazônia” (nº 129 a3). E da mesma forma, é uma
questão de “abrir novos espaços para se recriar os ministérios adequados a este
momento histórico. Chegou a hora de ouvir a voz da Amazônia … “(n. 43).
Mas aqui se omite o fato de
que, conclusivamente, até mesmo João Paulo II já havia afirmado, com a mais
alta autoridade magisterial, que não está no poder da Igreja administrar o
sacramento da ordem às mulheres. De fato, em dois mil anos, a Igreja nunca
administrou o sacramento da ordem a uma mulher. O pedido que se coloca em
oposição direta a este fato mostra que a palavra “Igreja” é agora usada
exclusivamente como termo sociológico pelos autores do “Instrumentum laboris”,
implicitamente negando o caráter sacramental-hierárquico da Igreja.
Sobre a negação do caráter
hierárquico-sacramental da Igreja
De maneira semelhante – embora
com expressões bastante passageiras – o n. 127 contém um ataque direto à
constituição hierárquico-sacramental da Igreja, quando se pergunta se não seria
oportuno “reconsiderar a ideia de que o exercício da jurisdição (poder do
governo) deve estar conectado em todas as áreas (sacramental, judicial,
administrativo) e de maneira permanente ao sacramento da ordem”. É a partir
dessa visão tão errada que surge no n. 129, o pedido para se criar novos ofícios
que correspondam às necessidades dos povos amazônicos.
Todavia, é no campo da
liturgia e do culto, no qual a ideologia de uma inculturação falsamente
entendida encontra sua expressão de maneira particularmente espetacular. Aqui,
algumas formas das religiões naturais são assumidas positivamente. O
“Instrumentum laboris” (n. 126) não se retrai em pedir que “os povos pobres e
simples” possam expressar “a sua (!) Fé através de imagens, símbolos,
tradições, ritos e outros sacramentos (!!)” .
Isto certamente não
corresponde aos preceitos da constituição “Sacrosanctum Concilium” e nem aos do
decreto “Ad gentes” sobre a atividade missionária da Igreja, e mostra uma
compreensão puramente horizontal da liturgia.
Conclusão
“Summa summarum”: o
“Instrumentum laboris” faz pesar sobre o sínodo dos bispos e, definitivamente,
sobre o próprio papa uma violação grave do “Depositum Fidei”, que significa
como consequência, a autodestruição da Igreja ou a transformação do “Corpus
Christi Mysticum” em uma espécie de ONG secular com um papel
ecológico-social-psicológico.
Depois dessas observações,
naturalmente, abrem-se outras questões: pode-se encontrar aqui, especialmente
no que diz respeito à estrutura hierárquica sacramental da Igreja, uma ruptura
decisiva com a Tradição Apostólica como constitutiva da Igreja, ou melhor, os
autores têm noção do desenvolvimento da doutrina que está sendo teologicamente
substituído, a fim de justificar as rupturas acima mencionadas?
Este parece ser realmente o
caso. Estamos testemunhando uma nova forma do Modernismo clássico do início do
século XX. Na época, deu-se início a uma abordagem decididamente evolucionista
e depois foi apoiada a idéia de que, no curso do contínuo desenvolvimento do
homem a níveis mais elevados, seriam encontrados igualmente níveis mais
elevados de consciência e cultura, o que significaria que o que era falso ontem
poderia ser verdade hoje. Essa dinâmica evolutiva também foi aplicada à
religião, isto é, à consciência religiosa com suas manifestações na doutrina,
no culto e, naturalmente, também na moralidade.
Mas aqui, então, pressupõe-se
uma compreensão do desenvolvimento do dogma que é claramente oposto ao
entendimento católico genuíno. Este último compreende o desenvolvimento do
dogma e da Igreja não como uma mudança, mas sim como um desenvolvimento
orgânico de um assunto que permanece fiel à sua identidade.
É isso que os Concílios
Vaticano I e II nos ensinam em suas constituições “Dei Filius”, “Lumen Gentium”
e “Dei Verbum”.
Portanto, deve ser dito
hoje com força que o “Instrumentum laboris” contradiz o ensinamento vinculante
da Igreja em pontos decisivos e, portanto, deve ser qualificado como um
documento herético. Dado que mesmo o fato da revelação divina é
aqui questionado, ou mal-entendido, deve-se também falar, que além disso, é
apóstata.
Isto é ainda mais justificado
à luz do fato de que o “Instrumentum laboris” usa uma noção puramente
imanentista da religião e considera a religião como o resultado e a forma de
expressão da experiência espiritual pessoal do homem. O uso de palavras e
noções cristãs não consegue esconder que elas são simplesmente usadas como
palavras vazias, independentemente do seu significado original.
O “Instrumentum laboris” para
o sínodo da Amazônia constitui um ataque aos fundamentos da fé, de uma forma
que até hoje não foi considerado possível. E, portanto, deve ser rejeitado com
a máxima firmeza.
Título e Texto: Sandro
Magister; Tradução: FratresInUnum.com,
27-6-2019
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