Carina Bratt
Os meus olhos veem e se
encontram com um piano solitário sem ninguém sentado na banqueta. A música que
me acordou às quatro e quinze da manhã, e que me trouxe até aqui, de fato, vem
dele e continua inalterável. Não estou sonhando. Vejo os teclados sendo
comprimidos por dedos invisíveis. Seria a tia Walquíria? Com certeza! O piano
antigo se tornou um instrumento vivo no seu silêncio constrangedor e agora
voltou à vida com a magnificência de uma maestrina anônima. Em outras palavras,
as trevas da morte antecipada não lhe calaram e ela, igualmente como o dia lá
fora, progrediu dilúculo.
Embora a tia não esteja ali,
em carne e osso, todavia, na minha concepção se faz cheia de vigor,
transformada em algo mavioso e fenomenal, irrestritamente materializada como um
anjo da falange do Pai Celestial ocupando um escondidinho da minha mente, ou, quem
sabe, inquilinada dentro do meu eu entorpecido. O importante é que, algo tipo
assim, surreal (não visto pelos meus olhos), me deixa extravagantemente
contente e feliz, como se eu visse um punhado de estrelas se acendendo em pleno
meio dia de um sol escaldante.
Com toda convicção, é a tia.
Sei que é ela, de algum lugar (ali) ou lá do alto, ou melhor, de um espaço
transcendental colocado além das minhas vistas (que de repente não conseguem
vê-la em razão de eu não ser, sei lá, uma vidente na acepção da palavra, menos
ainda adepta ou seguidora do espiritismo). Inexplicável, portanto, para meus
conhecimentos nessa área. Apesar dessa cegueira vou tentar ser mais cristalina:
por eu não ter ligação alguma com almas de luz própria ou deidades que vagueiam
num patamar aonde somente a poucos desta parte do planeta, é concebido
perceber, sentir, tocar ou falar, enfim... não a veja corporizada. Se eu
estiver errada, que alguém me corrija.
O importante é que a cantilena
que se multiplica por todos os cantos da construção, é de primeira ordem. Nesse
tom inebriante, a lírica segue uma trajetória búspia, suave, envolvente,
caliente, vinda, do perenal e, portanto, emissária de fluidos edificantes, sem
mencionar a galhardia ímpar do seu glamour. Não me interessa se o que ouço seja
obra de Giuseppe, Ravel, Puccini, Beethoven ou qualquer outra mistura de uma
das feras invisíveis da falange dos transparentes que em tempos de glória
viveram por aqui em séculos passados.
É a tia. Apesar de cética, me
faço incredulamente persuadida, reformada e crente e me quedo, sem delongas,
vencida, cheia, repletada até a raiz dos cabelos, diante de tanta beleza, posta
assim, de graça, em harmonia contagiante. A eurritmia segue acolhedora,
revitalizando o centramento da minha serenidade. Em paralelo, renova a paz que
me envolve, tornando-a forte e robusta, amenizada a ponto de afastar as
lembranças da tragédia da morte que levou titia embora em face de um tumor
maligno calcinado, a depois, em câncer terminal. É a tia em resumo, tentando existir.
A ampulheta sobre o tampo do instrumento assinala o correr das horas num
mesurado inconcebível, pausado e sem pressa.
Na parede atrás de mim, me
recosto os braços cruzados, os sentidos em alerta. Meus passos se calam no chão
que piso. Os chinelos emudecem. Não posso me dar ao luxo de fazer barulho.
Quero continuar ouvindo a tia ao piano, dando sabores e vestindo roupagens
novas aos pedacinhos de marfim ritmados num registro que foge, por alguma razão
que desconheço aos seus devaneios requintados. Do fundo do meu coração eu sei
que é ela. Por motivos que só ela saberia explicar mudou o aprecio (que já era
apuradíssimo) por outras notas que aprendeu com os irmãos do andar de cima. O
que faz toda a diferença, nesse momento, são
os gorjeios executados.
A polidipsia dela, pela
combinação dos sons mais eloquentes era tanta e continua tão forte que qualquer
medo que nesse momento (ou em qualquer outro, a futuro,) venha me tirar à
calmaria ou me importunar, será inútil. E nesse deleite devaneioso e ectoplasmal,
permaneço aqui parada, estática, os ouvidos em audição a mil, escutando,
embevecida, o piano inquieto. Presa a uma abasia insana, como se meus membros
de locomoção se negassem a marchar para outro lugar qualquer dentro da casa.
Título e Texto: Carina Bratt,
da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 30-6-2019
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