Carina Bratt
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Fine Art America — The Sonata, by Childe Hassam (1911)
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Cada quarto tem um banheiro individual.
A copa e a cozinha (pelas dimensões) se assemelham a uma moradia menor em face
de estarem ou parecerem incrustradas dentro da outra. Além dessas partes, o sítio-chácara
adquirido por ocasião em que vovô e vovó haviam acabado de se casar, a dinastia
abriga ainda três salas amplas e bem divididas e ventiladas, orquestrando
espaços com um conjunto de mobílias chiques e modernas.
Na sala principal, duas televisões
tela plana ladeiam um som porreta com quatro caixas maiores que eu. Um piano de
cauda ocupa um cantinho perto da cristaleira, juntamente com um órgão Diatron
raríssimo, com dois teclados perfeitos e quatorze pedaleiras. Sem mencionar um
acomodado menor, onde dividem o ambiente, a velha cadeira de balanço de vovô
Silvério, uma rádio vitrola inválida, com as vísceras de um cantor emudecido
num setenta e oito rotações, um relógio cuco de parede com um cuco afônico e o
mais bonito de se ver: uma varanda enjardinada com flores as mais diversas, sacada
essa que vai de canto a canto, como se abraçasse carinhosamente com seu verde toda
a construção de dois pavimentos.
Vovó Priscila, apesar de arqueada, assim
como uma árvore de raízes antigas, acometida por uma série de doenças em face do
avanço da idade, continua projetando sombras vastas a todos os filhos, genros,
noras, netos e bisnetos que a rodeiam. Nos finais de semana a parentada em peso
se reúne para o almoço. A galera se acomoda
sintonizada em algazarras e risadas numa mesa grandiosa, com nada mais, nada
menos, vinte e duas cadeiras.
Vovô se senta numa ponta e vovó em
outra, numa harmonia que não se desagarra, tampouco se desenlaça. É nessa hora
que a gente sente, dentro do coração, a alegria contagiante de ser um pequeno
ramo da enorme família Bratt. Faz parte desse tronco (ou melhor, fazia parte
desse tronco), a tia Walquíria, a única irmã de papai. Morreu faz seis meses.
A sua alegria e o seu sorriso ainda
flutuam pelas dependências da casa. Posso sentir o seu perfume nas roupas, no
ar que respiro nas horas que se esvaziam indiferentes ao seu adeus. Tia
Walquíria, se transformou, para mim, num fantasma de gestos cativos e delicados.
Confesso, me assusta o seu não estar mais aqui, me amedronta e me intimida,
porque ela não viveu o tempo necessário que precisava ser vivido.
A ampulheta em cima do piano, nunca
revelou se esse tempo seria agora ou qualquer outro dia ainda a porvir. A morte
ingrata triunfou sobre o medonho num repente inesperado e eu não posso dizer ou
afirmar, com a precisão devida, com a convicção que me alimenta o livre
arbítrio, se ela partiu antes, ou se ainda existia um espaço para nos encher com
a sua felicidade inebriadora.
De repente a vertigem do nunca mais
lhe infundiu a prematuridade da morte, e
ela, logo ela, que vivia no benfazejo de uma lâmpada inapagável que clareava a
nossa imaginação com o fértil da sua voz divinal, no instante seguinte, sem que
ninguém esperasse o seu “me perdoem, estou indo”, ela apertou o interruptor do lume
e nos encobriu a todos em funesta e árida escuridão.
Depois do almoço, tia Walquíria se
sentava ao piano e soltava a voz. Ainda agora escuto a canção como se ainda
estivesse entre nós:
“Hoje eu preciso te encontrar de qualquer jeito
Nem que seja só pra te levar pra casa
Depois de um dia normal
Olhar teus olhos de promessas fáceis
E te beijar a boca
De um jeito que te faça rir
(Que te faça rir)
Hoje eu preciso te abraçar
Sentir teu cheiro de roupa limpa
Pra esquecer os meus anseios
E dormir em paz
Hoje eu preciso ouvir qualquer palavra tua
Qualquer frase exagerada que me faça sentir alegria
Em estar vivo
Hoje eu preciso tomar um café,
Ouvindo você suspirar
Me dizendo que eu sou o causador da tua insônia
Que eu faço tudo errado sempre,
Sempre
Hoje preciso de você
Com qualquer humor,
Com qualquer sorriso
Hoje só tua presença
Vai me deixar feliz
Só hoje”.
Todavia, para mim ela sempre estará aqui. Ainda que
“não aqui”, em carne e osso, em espírito. E estará. Sentada ao piano, ou ao
teclado do órgão, eu a verei contando histórias, ou cantando as suas músicas preferidas,
ou simplesmente vagando nos ermos de seus sonhos. Tia Walquíria gostava de esperar
pela hora santa da ave-maria do crepúsculo, quando em genuflexão lentamente Deus
Pai com seus olhos brandos, anoitecia o sol.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Sertãozinho, Ribeirão Preto, interior de São Paulo, 9-6-2019
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