segunda-feira, 17 de junho de 2019

[As danações de Carina] De um pedaço de mim que nunca morre (parte TRÊS): Chiquinha

Carina Bratt

A minha melhor amiga é, sem dúvida alguma, a Francisca. Carinhosamente chamada pela mãe Marilza (a nossa cozinheira), de Chiquinha. E não é que o apelido pegou? Todos por aqui de Cachoeira e algumas famílias de Curitiba conhecem a Francisca pela alcunha. Vovô Silvério a trata assim. Vovó Priscila idem. Os quatro peões que trabalham e moram paredemeados com a edificação principal, bem como as esposas e os filhos deles.

Chiquinha, no conjunto, é um mimo de criatura e seu coração bate na aceleração de um descompassamento como se fosse um carnaval fora de época. Todos os dias, depois do café, ajudamos na lavação das louças e em alguns afazeres da casa, como varrer os quartos, passar panos molhados no chão, limpar as vidraças, renovar o óleo de peroba dos móveis. Vovó e Marilza e as esposas dos peões também dão uma mãozinha, mas não é sempre. Depois de cumpridas à risca essas tarefas, saímos para brincar.


Nosso lugar preferido. A margem calma do Rio Belém, perto de sua nascente, na pataca e bucólica Vila de Cachoeira, onde, alias, fica o sítio-chácara de meu avô. O Rio Belém se arrasta, a partir da sua nascente, leito afora, como uma cobra enorme colubrejando uma lerdeza frouxa, dando a impressão de pretender estancar a sua trajetória com medo de se juntar a outro rio, o Iguaçu, onde desemboca em suas cavas.

Nos quase trezentos metros que atravessa as terras de vovô, temos um barco de madeira ancorado num cais imaginário. Em outros tempos dessa marina, vovô Silvério saia com amigos ou parentes para pescar. Hoje essa pequena embarcação trás, à visitação aberta, as ferrugens estampadas como manchas feias flagranteadas na pele apodrecida da madeira.

As duas tábuas que servem de bancos, igualmente, não deixam de se deteriorar. Infeccionada pelo desuso das pessoas e a gastagem severa do tempo. Batizamos essa canoa com o nome de “FranCa” que nada mais é que a junção de Francisca (da Chiquinha) e o meu Ca (de Carina).  Com um remo improvisado que o senhor Beto, um dos peões fez para nós, ganhamos o meio da corrente (se é que se pode chamar a calmaria desse aguaçal contínuo de torrente).

Lá vamos nós, ora para o lado do Boqueirão, ora para o estonteante Parque das Nascentes. Esforço desnecessário. Nem seria preciso toda essa preparação prévia. Em alguns lugares se pode atravessar de barranca a barranca, andando com a água batendo pela cintura. Quando aportamos em algum lugar bem longe de bisbilhoteiros colocamos as fofocas em dia.

Dessa vez não foi diferente:
- Sabe o Dudu?
- Filho de seu Astério o capataz de vovô?
- Esse mesmo!
- O que tem ele?
- Fica o tempo todo de olho em mim quando vou ajudar a mãe a estender as roupas no varal.
Chiquinha se cala momentaneamente. Eu insisto para que continue a prosa. A curiosidade que vem de roldão é um dos meus traços fracos mais fortes:
- E você corresponde?

Minha amiga rebate, na hora, dando uma de sonsa. Sorri faceira. Contudo, sem que perceba, um vermelho vivo lhe colore o rosto. Sai de fininha, pela tangente. Ou tenta:
- Claro que não. Ele é muito feio, Ca. Prefiro o Dirceu do seu Beto. Um gato!
- Sou mais o André do senhor Marquinho.
- Ah, então confessa que está de olho comprido pra cima dele?
- Longe disso. Mas aqui entre nós duas. O André é um pedaço de mau caminho.
- Isso é verdade. Concordo.
- Outro dia me entregou um bilhete. Eu estava na janela do meu quarto e ele se aproximou. Acho que me vigiava. Surgiu do nada, assim... zás...

- Nossa! E o que dizia no bilhete?
- Chica, deixa de ser enxerida!
- Vai, fala. O que o André escreveu pra você?
- Tá. Eu falo. Escreveu que meus olhos refletem a luz incandescente das estrelas quando a noite chega. E que queria ser um homem pássaro encantado para voar até lá no infinito e roubar uma dessas estrelas para me dar de presente.
- Romântico, o mocinho.
- Muito. E você com Dudu? Rolou, ao menos, uns beijinhos?
Chiquinha se cala. Bolina suavemente na água como se procurasse as palavras certas, ou o tom romântico e ideal para me contar o seu segredo com o filho de seu Astério. 
 Título e Texto: Carina Bratt, de Brasília, Distrito Federal. 16-6-2019

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