Carina Bratt
A minha melhor amiga é, sem
dúvida alguma, a Francisca. Carinhosamente chamada pela mãe Marilza (a nossa
cozinheira), de Chiquinha. E não é que o apelido pegou? Todos por aqui de
Cachoeira e algumas famílias de Curitiba conhecem a Francisca pela alcunha. Vovô
Silvério a trata assim. Vovó Priscila idem. Os quatro peões que trabalham e
moram paredemeados com a edificação principal, bem como as esposas e os filhos
deles.
Chiquinha, no conjunto, é um
mimo de criatura e seu coração bate na aceleração de um descompassamento como
se fosse um carnaval fora de época. Todos os dias, depois do café, ajudamos na
lavação das louças e em alguns afazeres da casa, como varrer os quartos, passar
panos molhados no chão, limpar as vidraças, renovar o óleo de peroba dos móveis.
Vovó e Marilza e as esposas dos peões também dão uma mãozinha, mas não é
sempre. Depois de cumpridas à risca essas tarefas, saímos para brincar.
Nosso lugar preferido. A
margem calma do Rio Belém, perto de sua nascente, na pataca e bucólica Vila de
Cachoeira, onde, alias, fica o sítio-chácara de meu avô. O Rio Belém se
arrasta, a partir da sua nascente, leito afora, como uma cobra enorme
colubrejando uma lerdeza frouxa, dando a impressão de pretender estancar a sua
trajetória com medo de se juntar a outro rio, o Iguaçu, onde desemboca em suas
cavas.
Nos quase trezentos metros que
atravessa as terras de vovô, temos um barco de madeira ancorado num cais
imaginário. Em outros tempos dessa marina, vovô Silvério saia com amigos ou
parentes para pescar. Hoje essa pequena embarcação trás, à visitação aberta, as
ferrugens estampadas como manchas feias flagranteadas na pele apodrecida da
madeira.
As duas tábuas que servem de
bancos, igualmente, não deixam de se deteriorar. Infeccionada pelo desuso das
pessoas e a gastagem severa do tempo. Batizamos essa canoa com o nome de
“FranCa” que nada mais é que a junção de Francisca (da Chiquinha) e o meu Ca
(de Carina). Com um remo improvisado que
o senhor Beto, um dos peões fez para nós, ganhamos o meio da corrente (se é que
se pode chamar a calmaria desse aguaçal contínuo de torrente).
Lá vamos nós, ora para o lado
do Boqueirão, ora para o estonteante Parque das Nascentes. Esforço
desnecessário. Nem seria preciso toda essa preparação prévia. Em alguns lugares
se pode atravessar de barranca a barranca, andando com a água batendo pela
cintura. Quando aportamos em algum lugar bem longe de bisbilhoteiros colocamos
as fofocas em dia.
Dessa vez não foi diferente:
- Sabe o Dudu?
- Filho de seu Astério o
capataz de vovô?
- Esse mesmo!
- O que tem ele?
- Fica o tempo todo de olho em
mim quando vou ajudar a mãe a estender as roupas no varal.
Chiquinha se cala
momentaneamente. Eu insisto para que continue a prosa. A curiosidade que vem de
roldão é um dos meus traços fracos mais fortes:
- E você corresponde?
Minha amiga rebate, na hora,
dando uma de sonsa. Sorri faceira. Contudo, sem que perceba, um vermelho vivo
lhe colore o rosto. Sai de fininha, pela tangente. Ou tenta:
- Claro que não. Ele é muito
feio, Ca. Prefiro o Dirceu do seu Beto. Um gato!
- Sou mais o André do senhor
Marquinho.
- Ah, então confessa que está
de olho comprido pra cima dele?
- Longe disso. Mas aqui entre
nós duas. O André é um pedaço de mau caminho.
- Isso é verdade. Concordo.
- Outro dia me entregou um
bilhete. Eu estava na janela do meu quarto e ele se aproximou. Acho que me
vigiava. Surgiu do nada, assim... zás...
- Nossa! E o que dizia no
bilhete?
- Chica, deixa de ser
enxerida!
- Vai, fala. O que o André
escreveu pra você?
- Tá. Eu falo. Escreveu que
meus olhos refletem a luz incandescente das estrelas quando a noite chega. E
que queria ser um homem pássaro encantado para voar até lá no infinito e roubar
uma dessas estrelas para me dar de presente.
- Romântico, o mocinho.
- Muito. E você com Dudu?
Rolou, ao menos, uns beijinhos?
Chiquinha se cala. Bolina
suavemente na água como se procurasse as palavras certas, ou o tom romântico e
ideal para me contar o seu segredo com o filho de seu Astério.
Título e Texto: Carina Bratt, de
Brasília, Distrito Federal. 16-6-2019
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