terça-feira, 11 de junho de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Bonde errado

Aparecido Raimundo de Souza

O MAURÍCIO NAMORAVA há mais de seis meses com a Patrícia, que trabalhava numa loja de artigos esportivos, numa das principais ruas do centro da cidade. Não se sabe por que cargas d’água, os dois se desentenderam feio e a moça, sem mais nem menos, mandou o infeliz plantar batatas. Maurício, claro, não foi. Descontente com o rompimento e insatisfeito por ter sido “dispensado” sem maiores explicações, procurou a jovem por diversas vezes, mas ela, resoluta, bateu pé e não lhe deu confiança. Foi quando o Maurício encontrou o Fernando “Caolho” saltando de um ônibus. Ia cruzar a avenida movimentada quando o amigo lhe gritou pelo nome. Reconhecendo a voz, o outro prontamente estancou os passos, deu meia volta e alegremente abraçou o companheiro:

- Maurício, quanto tempo?
- Mais de ano, Fernando! 
- Como está você? Tudo azul com bolinhas da mesma cor?
- Não muito bem. Estaria tudo como você mencionou aí, se não estivesse mal no quesito amor. Arranjei uma namorada, mas ela me deu um belo de um chute no traseiro. Até agora sinto as dores da sapatada recebida.
- Me conte.
- Vamos tomar uma geladinha?

Havia um boteco próximo e para lá se dirigiram, abraçados. Só que, de uma passaram para duas, três, cinco, doze, quinze. O tempo correu. Os dois sentados numa mesinha bebiam e conversavam animadamente. O detalhe é que o tal barzinho, coincidentemente ficava quase em frente à Patrícia, a namorada de Maurício. Aliás, de dentro do estabelecimento o Maurício podia acompanhar nitidamente todos os movimentos da moça, naquele momento, à porta da loja conversando com transeuntes curiosos que passavam e paravam para pesquisar preços. O fato é que os vapores do álcool andavam altos e ambos os amigos (que entornavam sem parar por um bom espaço de tempo), já não conseguiam segurar com a firmeza devida os copos que tinham diante dos olhos.

- Mas me conte aí, velho Maurição. Quem é a doida?
- Estou olhando para ela...
Fernando “Caolho” virou a cabeça para o lado que Maurício apontava com o dedo em riste.
- O meu “caolho” é só no apelido. Cadê?
- Lá.
- Não pesquei meu chapa. Lá aonde?
Maurício mostrou, então, a sua querida e adorável amada.
- Está vendo aquela belezura com uma camiseta e um shortinho do Flamengo?
- Você mudou de time?
- Não, seu idiota. Continuo botafoguense doente. Ela anda vestida daquele jeito porque o patrão quer. Propaganda prá vender mais. Dá uma “manjada” no sujeito ao lado, fantasiado de vascaíno.
- Iiiii, Jesus... vascaíno?

-Sem brincadeiras. Deixa Jesus fora disso. Ta vendo ou não?
- Não. Onde?
- Ali, droga...
- Ah, agora me liguei. Uau, cara! Fica frio, estou situado. Sua “mina” é irada. Parabéns. Acaso quer que seu amigo aqui dê uma ajudinha para uma reconciliação?
- Não seria nada mal. Diz aí, me daria uma força com a beldade?
- Sem dúvida alguma. Somos amigos ou não? Manda bala, qual o plano?

O plano era muito simples. Em rápidas palavras, o Maurício propôs um sequestro relâmpago. Não propriamente um sequestro. Sequestro no modo de dizer. A coisa estava mais para um rapto ligeiro, uma fugida de meia hora, no máximo, com a garota para um cantinho que ele sabia existir ali perto. Esse cantinho, nada mais, nada menos, um hotelzinho “entra e sai”. Sem problemas. No fundo, almejava ficar a sós, na hora em que o expediente encerrasse. Pretendia, numa conversa franca, de pé de ouvido, convencer a Patrícia a reatar o namoro interrompido.

Combinou com Fernando “Caolho”, que o serviço seria levado a efeito, se ele topasse encarar a empreitada, naquele mesmo final de tarde, quando o comércio desse por findado o dia laboral.
Maurício passou um cartãozinho com o endereço.
- Olha cara. Espero vocês lá. Vou locar um quarto. Tenho um amigo que trabalha na recepção, o Macedo. Ele ficou de me arranjar o vinte e dois. Lembra. Dois patinhos na lagoa. Faltam só quinze minutos para ela “sair fora” e rachar no trecho.
- Deixa comigo, cara. Repassando a “encomenda”. A sua gatinha é aquela vestida de flamenguista, não é? Relaxe. A “mina” está no papo. E em breve estará em seus abraços. Mande descer a saideira.

A saideira se estendeu por mais cinco. Fernando “Caolho” estava completamente perdido. Pior que cego em tiroteio. Não distinguia praticamente nada. Porcamente divisava o amigo sentado ao seu lado.
- Se ligue, ela deve estar saindo.
- Espere no ponto de encontro. Vai ser moleza. Ponho ela na cacunda e me mando. Me aguarde...
- Não vá esquecer o endereço. Basta virar a esquina. Quarto vinte e dois. Memoriza. Dois patinhos na lagoa. Dois patinhos na lagoa. Procure pelo Macedo. Vou deixar o sujeito de sobreaviso. O local é um hotelzinho fuleiro, mas para o que pretendo...
- Conheço a espelunca. Isso aqui é o meu caminho de casa. Ei, cuidado com o “pulgueiro”.
- Ta bom. Vai, vai, vai. Respeito com ela.
- Mulher de amigo meu prá mim é homem. Fui...

Fernando “Caolho” se levantou cambaleante. Segurou firme nas paredes tentando recuperar o controle das pernas trêmulas. Maurício igualmente se pôs de pé, acompanhando o parceiro. A cabeça girava. Sentia o coração lhe chegando à boca. As luzes do bar e as da rua agora todas acesas, pareciam enfraquecidas. Suas pernas, como as de Fernando “Caolho”, também quedavam amolecidas. Mas estava feliz.

Logo teria nos braços a sua Patrícia. Um frágil sentimento de esperança lhe percorreu o corpo. Seus batimentos cardíacos se aceleraram. Ele corou quando a mente resgatou os momentos vividos com a menina. Naquela noite a teria de volta. E novamente se perderia na fascinação de seu corpo escultural de rainha. Pagou a conta ao garçom e bateu em retirada para o local determinado usando um caminho inverso visando não ser visto pela paixão da sua vida.

Deu um alô no Macedo da portaria seguido de uma gorjeta caprichada.  A criatura se propôs a ficar de prontidão e quando o amigo chegasse com a garota, o faria chegar à suíte vinte e dois sem muita delonga. Enquanto subia os degraus de madeira em direção ao aposento, lágrimas brotaram nos cantos dos olhos embaçando a sua visão. A garganta se apertou quando murmurou o nome da amada. A um tiro de espingarda da pousadinha, de tão perto que se fazia o prédio, Fernando “Caolho” não perdeu tempo. Cruzou correndo a rua.

Divisou o alvo. Seria mais fácil que tirar brinquedo da mão de uma criança. A moça, nesse instante, estava parada na soleira da porta. Parecia estática. A iluminação do interior da loja projetava a sua silhueta ereta, empertigada, num canto da entrada. Fernando “Caolho” achou que aquele seria o momento propício. Não esperou uma segunda chance. Correu em direção à charmosa, os braços abertos, como se fossem asas e passou as mãos em torno da cinturada da estonteante cinderela.

Com a agilidade de um gato, tomou a nos braços e jogou a sobre o ombro esquerdo e desabalou na carreira. Um ligeiro tumulto seguido de um corre-corre dos diabos com vozes furiosas em uníssono teve início logo após a sua ação.
- Pega o ladrão, pega o ladrão – gritava a turba. - Ele foi por ali... rápido. - Está armado... é perigoso...

Fernando “Caolho”, com a jovem nos costados, sequer teve tempo de olhar para trás. Tratou de abrir vantagem se distanciando de seus seguidores. Entretanto, tudo o que fez resultou inútil. Logo adiante, uns quinhentos metros, talvez menos, estava meio grogue e cansado, havia, inclusive tomado atalho por um beco errado, policiais militares o cercaram de todos os lados.
- Parado aí. Largue a moça...

Preso e algemado levaram o Fernando “Caolho” para uma das celas da delegacia de plantão. Depois de curada a ressaca braba, teve que explicar tintim por tintim ao delegado de plantão, os motivos que o levaram a furtar, na porta da loja de artigos esportivos, uma manequim de gesso com as roupas do flamengo.



tulo e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de São Bernardo do Campo, São Paulo, 11-6-2019

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