E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança.
Gênesis 1:26
O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a
marca indelével de sua origem modesta.
Charles Darwin
Esperara tanto por aquele
momento, mas era chegada a hora; finalmente, era chegada a hora... Sabia
tudo e não conhecia nada do que ia ver. Movimentava-me lentamente na direção do
encontro, expectado, quase em transe; tinha e não tinha consciência do que se
passava; estava entre o sonho e a realidade; mas, finalmente era chegada a
hora, aquela hora tão esperada, tão acalentada. Se tanto possível, havia um
sentimento de tranquilidade e de tensão, numa situação dialética a ser
superada.
Eu me via sem reflexo de
espelho. Saíra de mim mesmo para me observar. Não sabia se os pés estavam no
chão, não sentia o andar. Estava como um astrofísico que tudo sabe sobre buraco
negro, sem nunca ter entrado em seu vórtice. Vi-me transpor os umbrais e chegar
ao local do encontro. Lá estava eu, olhos ao alto.
À proporção que O via, todo o
murmúrio ao meu entorno ia se dissipando, como a mortiça luz do crepúsculo
vespertino. De repente, vejo-me deitar suavemente em decúbito dorsal,
respaldado no piso.
Então, há uma sensação de
discreto levitar, seguido de uma ajustada posição para ver o alto, ver o
infinito, para aonde me transportara, onde me via enquadrado. Sentia-me parte
da paisagem por mim mesmo contemplada. E lá, próximo a mim, estava Ele. O rosto
emoldurado por barba e cabelos longos, levemente revoltos, vergando uma túnica
diáfana e inconsútil, braço em riste, índice em minha direção, com a manifesta
intenção de tocar-me, de dar-me vida, uma vida que julgava já me houvera sido
concedida. Os sentimentos baralhavam-se: ele me tocaria por eu já existir, ou
com o toque me concederia a existência?
Era a mim mesmo que Ele
criava, ou eu estava assistindo ao ato único da criação? Não importa, o momento
era sublime e grandioso. Ali, em toda aquela cena, havia a marca da
genialidade. Eu via o seu olhar penetrante, poderoso e doce ao mesmo tempo,
seguro de fazer o que lhe aprazia fazer. Parecia dizer que o Seu toque poderia
criar qualquer coisa, poderia transformar qualquer desiderato em concreção,
poderia do nada tirar a vida, e à vida conceder um destino, um destino entregue
em nossas mãos para ser talhado por decisão própria, ainda que jamais
soubéssemos qual seria.
Quanta liberdade e quanta
submissão. Livre para decidir e escravo da decisão tomada, pois somos as nossas
escolhas e as nossas escolhas são o que somos. Essa seria a grandeza e a
tragédia para todo e sempre. A responsabilidade pela decisão tomada seria o
ferrete incandescente a marcar a todos e a cada um por toda a vida. Passava os
olhos de uma visão para outra e contemplava toda a senda daí por diante
percorrida, ali estava gravada toda a nossa trajetória, todos os nossos momentos
de grandeza e de abjeção, todas as resistências e todas as submissões, tudo sob
o sinete do julgamento final.
O mais importante, entretanto,
era aquele momento do faciunt vitam, a certidão de nascimento do homem, feito à
Sua imagem e semelhança, destinado por isso mesmo a todas as grandezas, a ser o
senhor do universo, capaz das obras mais geniais, possibilidade cujo atestado,
ante a grandeza da obra contemplada, me era dado naquele exato momento a que
tudo admirava.
Não obstante, decaídos pela insubordinação
ao ditame divino, perdida a ingenuidade, recebêramos o sinete da condenação,
cada qual condenado a viver o seu próprio drama, mas admoestado a não sucumbir
às tentações inúmeras, que tudo seria submetido ao julgamento do Seu Filho,
exatamente como eu estava vendo em direção mais abaixo.
Toda a nossa trajetória
circunscrita a um ambiente, genialmente concebida e executada. Ainda assim,
naquele momento, entre a inconsciência e a realidade, sentia a primazia de ser
a sua obra, de tê-Lo por ancestral. Tudo aquilo me dava um toque divinal,
sentia orgulho da minha natividade e, por isso mesmo, contemplando a
genialidade de uma obra de que só o homem era capaz de cometer, dizia, de mim
para mim mesmo, extasiado: só nós somos a tanto capazes, que obra, que obra,
genial, genial, genialidade divina!
No transe da admiração, sinto
alguém, tocando-me o braço, tirar-me daquele torpor, daquela enlevação, como se
estivesse transitando do sonho ao despertar... Olho e vejo, frente a mim, uma
figura diferente, coberta de pelos negros, arcada superciliar proeminente, boca
esgarçada, equilíbrio vacilante, a dizer-me com um sorriso sarcástico:
“Genialidade divina nada, sou o vosso verdadeiro ancestral, quem de mim
descende não se confinará ao genial”. - Como posso ser você se fiz coisas
belas, maravilhosas, geniais? Olha o seu derredor, veja do que sou capaz! –
“Vós não sois eu, verdade, mas em vós me transformei. Vede o Holocausto, vede o
Arquipélago Gulag! É essa a vossa grande obra? É disso que vos orgulhais?”.
Passara do encantamento à
angústia, da glória ao nada. Sentia toda a possibilidade de grandeza e
genialidade esvanecer-se. Fora reduzido, por aquela sentença, à
insignificância. Era como se houvesse um precipício aos pés, uma queda no vazio
infinito, quase um pesadelo. Eis que saio do transe, apuro os sentidos,
desperto para a realidade e vejo e ouço o guia dizer: “Vamos, senhor,
levante-se! Já vai fechar a Capela Sistina”.
Título e Texto: Pedro
Frederico Caldas
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Teto da Capela Sistina - Palácio Apostólico (Cidade do Vaticano). Foto: RPBaião/Sutterstock.com |
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