Aparecido Raimundo de Souza
ARTEROSCLEROSO FOI FLAGRADO enquanto dormia na sala de aula. Boca aberta roncava e babava. Vez em
quando, restrugia, tempestuando uns sons que estralejavam acima do normal. Os
colegas em vista disso, dispostos em derredor de sua ociosa prostração,
algazarravam imitando o desditoso moleque. A tia Virgínia, professora de
português, a certa altura, quase a perder o fio de meada e, sobretudo, furiosa,
face aquela falta de atenção de seu aluno, e por conta dele, a classe inteira
descaseada em alvoroço, achou por bem acordá-lo, e, ato contínuo, mandá-lo para
casa. Como era a primeira cochilada, apesar de muitíssimo aperreada com a falta
de modos do garoto, daria uma chance.
Perdoaria o moleque não tomando nenhuma decisão mais drástica, como
encaminhar o dorminhoco para a diretoria, ou o que considerava mais incisivo
que isso, advertir os pais com um bilhete para que viessem ter com ela uma
conversa de pé de ouvido. Assim que Arteroscleroso saiu de cena, a mestra, à
promessa de uma compensação a ser observada na próxima aula, pediu para que os
demais esquecessem aquela cena objetivando que a notícia não virasse chacota e
vazasse, ou fosse parar nos ouvidos dos responsáveis pelo moleque cansado.
Quanto a isso, tudo transcorreu dentro da normalidade esperada. E o caso, de
fato, caiu arquivado no esquecimento.
Em contrário, a mãe do moleque, dona Ximanga, vendo o filho mais cedo em
casa, ficou com a pulga coçando atrás da orelha, além de obstinadamente
cabreira. Resolveu tirar a história a limpo assim que ele cruzou o portão de
entrada:
- Ar, - perguntou, de chofre. - Por que chegou antes do horário
previsto?
O piá se fez evasivo e peremptório:
- Não cheguei mãe!
Dona Ximanga insistiu resoluta:
- Como não? Seu horário é às cinco da tarde e ainda não deu três horas. Qual
o motivo do seu regresso tão repentino?
Arteroscleroso teimoso como uma mula, rebateu na tecla do que havia
dito:
- Estou dentro do meu horário, mãe.
A mulher começou a dar sinais de impaciência diante daquela lorota
arguciante:
- Não minta...
O guri desconversou embaiado num logro que se fazia visível:
- Seu relógio é que está errado, mãe.
Dona Ximanga bateu com a mão esquerda sobre o tampo da mesa. Um vaso que
sobre ela estava, à guisa de enfeite, com uma flor de plástico entubada, deu um
salto, como se tivesse, de repente, se assustado:
- Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.
Arteroscleroso seguiu reservado no inalterado da sua resposta una:
- Não estou lhe tirando...
Dona Ximanga embrabeceu o tom da voz:
- Está sim. Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?
O Filho procurou uma vez mais mostrar uma calma inexistente prestes a
escorregar pelo ralo da sua palidez:
- Não senhora!
A mãe arrochou o cerco pegando carona nessa brecha:
- Sua mãe é loira?
- Até ontem a senhora era... não sei por qual motivo pintou o cabelo...!
- Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima
de mim. Vamos, me fale, por que chegou mais cedo?
- Não cheguei mãe, já disse!
- Ar, não insista em perpetuar um erro ostensivo querendo se fazer de
idiota. Você não é um pateta. Seu nariz vai crescer. Está lembrado daquele
menino do livro que pegou outro dia na biblioteca onde um tal de Timóteo...?
- Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.
- O nome da criatura não importa. O que conta é a mentira. Vamos,
desembucha...
- Está bem mãe. Eu conto – obtemperou a fisga de uma nova paparrotice. -
A tia Virgínia, minha professora de português me pegou beijando a Glorinha...
- Aonde?
- No banheiro das meninas...
- Em que lugar foi o ato, mocinho?
- Ah sim. A senhora não explica!
Na boca... onde mais poderia ser?
Dona Ximanga ao saber dessa proeza do filho, saltitou. Pulou de alegria. Todo seu ego se satisfez
orgulhoso.
- Puxou seu pai. O cachorro do seu pai...
- E por que chama papai de cachorro?
- Porque quando começamos a namorar, o danadinho me cobriu de beijos.
- Não sabia. Onde, mãe?
- Não vem ao caso...
Sem esperar por outra indagação, a jovem mãe se achegou de seu querido
filho e o cobriu carinhosamente num abraço apertado.
- Graças a Deus, Arteroscleroso. Temos a perpetuação da espécie. O mais
novo machão do pedaço. Pensei que a tia Virginia, a sua professora, tivesse
surpreendido você de boca aberta, dormindo e roncando na aula dela. Pior,
babando. Ai meu querido, a sua mãe iria perder a esportiva e ficar muito pê da
vida. Talvez até lhe desse uns bons tabefes. Glorinha? Legal! Ótima notícia.
Safadinho, hein? - Agora vá tirar o uniforme e lavar as mãos. Vou preparar um
lanche para nós.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no
Espírito Santo. 2-7-2019
Colunas anteriores:
Carta de adeus à Cleuza
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