sexta-feira, 12 de novembro de 2010

José Mestre - o homem sem rosto

José Mestre, Lisboa, 2007

Fernanda Câncio
A primeira vez que o vi achei, lembro-me bem, que estava a ver mal. Foi, creio, na rua 1º de Dezembro: uma figura escura, ao longe, um rosto indistinto, inquietante, talvez uma sombra, que estranho, o que é aquilo, uma máscara?, até perceber que era, sim, afinal, a cara de uma pessoa, uma cara monstruosa, lancinante, da qual o olhar se desviava, em pudor e calafrio, até poder duvidar de novo – vi bem? Era mesmo uma cara? É mesmo assim?

Sim, era assim mesmo. Voltei a vê-lo, uma, outra vez. A confirmar o terror daquela condição, a dúvida – como respira? Como fala? Como come? Como vê? Passei a procurá-lo, ao passar, como mais um marco da Baixa – como o homem dos cães brancos que coloria a rua Augusta ou aqueloutro que ajoelhava, tronco nu, cabelo desgrenhado e barba, mártir oferecido à esmola. Romanceavam a minha cidade – imaginava-lhes a história, o percurso até chegarem ali, até este conto de McCullers, esta novela de McCarthy, esta personagem de Auster. Pensei entrevistá-los, cotejar a minha ficção com a deles. Abordei o homem dos cães brancos. Contou-me muitas coisas. De onde vinha, porque estava ali todos os dias, porquê só cães brancos. Mas não me deu autorização para as escrever. “Não estou interessado”, disse.

Talvez, pensei, o homem elefante não estivesse sequer interessado em que alguém se aproximasse dele. Para quê? Porquê? Dizer o quê? “O senhor tem o quê, na cara?”. Nunca o tinha visto a falar com ninguém, nem sequer com alguém. Sempre só, a andar – vinha de onde? Ia para onde? -- ou sentado nas soleiras, vergado ao peso terrível daquela deformação e do deserto que ela implicava e no entanto ali, na praça da cidade, onde todos podiam vê-lo, comentá-lo, negá-lo, evitá-lo, integrá-lo na paisagem até deixar de dar por ele. Porquê, sempre ali? Viveria perto? Onde dormiria? Teria família?

Alguém? Tinha muito mais perguntas. Como é que se sustenta? Nasceu assim? Isso não tem cura?

Nunca as fiz, às perguntas. Nunca tive coragem sequer de dizer olá, de dizer “Desculpe, posso falar consigo?”. Tive medo. Medo de que a minha abordagem fosse uma intrusão, mais uma agressão entre decerto tantas, mas sobretudo medo de encarar aquela deformidade de perto, de não conseguir disfarçar a repulsa. Medo do que podia ouvir, medo do sofrimento, medo da dor – a dor que passa sempre, e o sem remédio dela --, medo de ficar ligada àquele destino, medo da impotência. Meses a pensar nisso. E depois deixei de o ver, de pensar nele, o homem sem nome, sem cara, a assombração do Rossio.

Sei agora aquilo que todos sabemos: foi em virtude de uma reportagem que ele acabou por ser operado. Em 2007 o canal Discovery levou-o a Londres para ser visto por um cirurgião inglês, para um episódio da série “My shocking stories”. Em 2010, acabaria por ser operado em Chicago. Vi uma parte do trabalho do Discovery. Incomodou-me a exposição brutal da deformidade, aquilo que não pode deixar de ser considerado uma exploração mórbida, o espectáculo da abjecção, do choque. 

Balanço entre o bem que adveio a este homem por via deste documentário – para começar, o de lhe saber o nome, José Mestre, e de poder deixar de o referir apenas pela descrição da sua infelicidade – e o preço que teve de pagar. Depois, tenho outras dúvidas, muitas. Era inevitável que o tumor que lhe foi agora retirado tivesse alcançado foro de recorde mundial? Não teria sido possível operar antes, em Portugal ou fora, quando era muito mais pequeno, quando não era um fenómeno de feira? E se sim, que obstou a isso? Pode ser que tenha só faltado uma câmara, um micro, o interesse de um repórter e “uma boa história”. Pode, pode ser – e o que isso diz do jornalismo português, o que isso diz de mim, o que isso diz de nós.
Fernanda Câncio, Notícias Magazine, 31-10-2010

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