segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Encenações portuguesas


Entre as encenações e a realidade há uma distância que não pode ser iludida nas cimeiras internacionais ou nas greves gerais portuguesas.
«Os efeitos especiais não são apenas para uso político interno e revelam um potencial de exportação assinalável - sobretudo agora, quando precisamos desesperadamente de equilibrar as nossas contas externas. Não seremos então capazes de (.) fazer render o nosso Hollywood à beira Tejo , como fabricantes de ilusões épicas para um mundo que tanto precisa delas? (.) Somos excelentes a organizar festividades internacionais, a estimular convívios e consensos - como se verificou com as duas presidências portuguesas da UE. Não foi por acaso que o tratado que, a partir de agora, deverá enquadrar a construção europeia, teve a sua gestação na nossa capital e dela recebeu o nome de baptismo. O que nos falta é aprender a rentabilizar essa especialidade e esse talento inato para simular milagres».
Não resisti a esta longa citação de uma crónica que aqui publiquei há quase um ano sobre a cimeira europeia, encenada sob uma tenda em Belém. Menos de doze meses depois, o cenário mudou para o Parque das Nações, mas o sentido do que escrevi poderia ser praticamente o mesmo acerca das cimeiras da NATO do último fim-de-semana. Com uma ressalva: se, então, precisávamos «desesperadamente de equilibrar as nossas contas externas», hoje estamos definitivamente reféns delas e já à mercê da intervenção do FMI.

O resgate da dívida da Irlanda ou a natureza muito diversa dos casos português e irlandês não foram suficientes para desarmar a cega incompreensão dos mercados. E, uma vez mais, o imperturbável voluntarismo do nosso primeiro-ministro acabou por sofrer um duro revés, quando os juros da dívida voltaram esta semana a ultrapassar a marca fatídica dos 7 por cento.
Embalado durante dois dias pelo ambiente de irrealidade que compôs a preceito o sucesso simbólico das cimeiras da NATO - permitindo-lhe conviver, enquanto feliz anfitrião, com alguns dos grandes deste mundo -, José Sócrates logo se viu obrigado a descer à cruel realidade de um pequeno país à beira da falência. Os elogios efusivos com que foi mimoseado por Obama e outros dirigentes internacionais foram apenas um bálsamo ilusório para as suas angústias secretas.
Mas não foi só para Sócrates que a encenação destas últimas cimeiras de Lisboa serviu de teatro de ilusões e consolo efémero, apesar do carácter histórico de alguns objectivos que estavam no programa: o novo conceito estratégico da NATO, a parceria com a Rússia, a passagem do testemunho no Afeganistão ou a revitalização das relações transatlânticas em tempos de crise económica sem precedentes.
O palco foi ocupado por Obama, Medvedev, Barroso, o secretário-geral da NATO, Rasmussen, o fantasmagórico presidente europeu, Van Rompuy, ou o presidente afegão, Karzai, um homem que parece incontornável mas em quem, decididamente, ninguém pode confiar. Todos eles venderam a receita de um optimismo circunstancial que chegou a contagiar alguns comentadores mais sensíveis ao sortilégio dos momentos históricos . Mas, para além do anúncio formal de uma nova NATO e dos desejos mútuos de entendimento, foi a sombra das incertezas e da vulnerabilidade dos protagonistas das encenações lisboetas - como Obama, Medvedev ou Karzai - que ficou a pairar.
O Presidente americano está agora refém de um Congresso hostil. O Presidente russo, por muito que queira afirmar a sua autonomia, está refém de Putin. O Presidente afegão está refém dos talibãs, da porosidade das fronteiras (sobretudo com o Paquistão talibanizado ), dos senhores da guerra e da droga, da corrupção como cimento da governabilidade (ou até do imbróglio histórico de um país fantasma que nenhuma potência foi capaz de domar). Já a Europa, agora com a ameaça de implosão da zona euro, está refém da sua inexistência política, enquanto Portugal, mais prosaicamente, está cada vez mais refém dos credores e da histeria dos mercados que, no fundo, é quem mais ordena no mundo desordenado em que vivemos.
Ora, com tantos reféns, o guião exuberantemente optimista escrito para estas cimeiras históricas de Lisboa corre o risco de não passar da encenação aos factos.
Àgrande encenação da NATO seguiu-se aquela que deveria constituir outro momento histórico: a maior manifestação de força sindical de sempre em Portugal. Mas se parece totalmente prematuro, com tantas incertezas e incógnitas pelo meio, prever o resultado efectivo das cimeiras de Lisboa, da greve geral pode dizer-se quase o contrário. Como escreveu Pedro Guerreiro no Jornal de Negócios, foi uma greve «tardia, incapaz de travar as medidas de austeridade, mais de desistência do que de resistência».
Por muito justo que fosse o protesto, o seu efeito revelou-se sobretudo simbólico, porque os dados já estavam definitivamente lançados e restava apenas uma alternativa entre dois males: o Orçamento do Estado (OE) e o orçamento do FMI. Não por acaso, dirigentes sindicais associados à organização da greve geral, como o líder da UGT, tinham-se mostrado apreensivos com um chumbo do OE no Parlamento.
Entre as encenações e a realidade dos factos há uma distância que não pode ser iludida com efeitos especiais. Seja nas cimeiras internacionais, seja nas greves gerais portuguesas.
P.S. Em nome da competitividade, instalou-se a política de dois pesos e duas medidas na distribuição de sacrifícios impostos pela crise. O regime de excepção às restrições salariais na Administração do Estado e empresas públicas, beneficiando a CGD, a TAP ou o Banco de Portugal, segue-se à antecipação da distribuição de dividendos pela PT, logo imitada por grupos privados como a Portucel e a Jerónimo Martins. Com tais estímulos, não irão faltar, decerto, outros exemplos igualmente legais, competitivos e muitíssimo patrióticos. O Governo condescende e Pedro Passos Coelho concorda. É um tema a que voltarei numa próxima crónica.
Vicente Jorge Silva, jornal Sol, 26-11-2010

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