terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O homem do carro mais caro do que a casa

Chevrolet Impala 1959. Foto: Constatin Cheptea/TopSpeed.com

No tempo em que o dinheiro ainda se media em escudos tinha um vizinho, na suburbana vila do Cacém, possuidor feliz de um automóvel a atirar para o que usualmente se classifica como sendo "de luxo". A viatura, mesmo depois da saída do stand de vendas, valia mais do que o pequeno apartamento, construído nos princípios dos anos 60, onde ele vivia com a família, mulher e filho. Essa troca de prioridades - investir mais na viatura do que na casa - fazia-me confusão. 

Como não conduzo não padeço desse vírus de metal e gasolina que tantas vezes infecta a afirmação pessoal masculina na sociedade de consumo. Desconheço também como é que esse meu vizinho adquiriu o automóvel - podia ter--lhe saído numa rifa, quase borla, sei lá. Talvez não entenda, portanto, alguma parcela daquela equação, mas o facto é este: todos os dias cumprimentava alguém que, às sete da manhã, embarcava num automóvel valioso para se atascar durante hora e meia na paralítica fila de trânsito da IC19, em direcção a Lisboa . Eu, num comboio da CP, fazia um percurso semelhante num terço do tempo...

Lembrei-me destes factos ao saber que no mês passado se bateu um recorde de compras de automóveis no País, explicado pelos felizes vendedores com a antecipação das dificuldades deste ano novo: milhares de portugueses (aqueles que puderam, claro) trataram de evitar o aumento de impostos de 2011 e trocaram de carro ainda em 2010, mesmo se antes do tempo normal para o fazerem.
Volto à incomodidade de há 20 anos, quando tinha aquele vizinho: sinto que à minha volta anda tudo ao contrário do que seria natural. Parece que as pessoas perderam o sentido da prudência e, se antecipam o futuro, tentam ludibriar o inevitável em vez de tentar precaver as dificuldades.

Recordo também que fez precisamente 25 anos, sábado passado, que Portugal entrou para a CEE. E constato que, afinal, o maior legado da Europa a Portugal não foi o dos milhões em fundos estruturais que aqui desaguaram e se perderam num esgoto de incompetência e corrupção. Não foram os mercados que se abriram para recusarem os nossos produtos caros e antiquados. Não foi, obviamente, a reconversão do nosso sector produtivo, que quase se aniquilou. 

O maior e mais triste legado da União Europeia, inculcado durante duas décadas e meia pelos senhores da economia ao povo, expresso na vida real em vizinhos como o meu, resume-se nesta frase: "Consome já hoje aquilo que não podes pagar amanhã."
A Europa, em 25 anos, fez de nós um país de caloteiros e agora pede o impossível: que paguemos.
Pedro Tadeu, Diário de Notícias, 04-01-2011

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