Diz-se que quando o famoso
diplomata austríaco Klemens von Metternich soube da morte do embaixador turco,
ele disse: "Eu me pergunto o que ele quis dizer com isso?"
Se isso é verdade ou não, se é
sério ou piada, o dito assinala um problema de diplomacia. Em busca do
significado por trás de cada gesto, diplomatas começam a considerar todas as
ações como meramente gestos. No mês passado, o presidente dos EUA tratou o ato
de bombardear a Síria como um simples gesto destinado a transmitir um
significado, ao invés de uma ação militar que pudesse ter alguma finalidade
específica. Esta é a chave para a compreensão do conto que foi o desdobramento
dos fatos ao longo do mês passado.
Quando o presidente Barack
Obama ameaçou sua ação militar em retaliação por aquilo que ele dizia ser o uso
de armas químicas pelo governo sírio, que se referia a um ataque limitado, que
não iria destruir essas armas. Destruir todas elas com ataques aéreos exigiria
bombardeios extensos, consistentes e demorados, que, afinal, não poderiam ser
enquadrados como “limitados”, sem falar no fato de que a operação militar ao
atingir tal arsenal arriscaria liberar grande quantidade de produtos químicos
letais para a atmosfera. Tal operação, também, não teria a intenção de destruir
o regime do presidente sírio, Bashar al Assad. Também isso seria impraticável a
partir do ar e haveria o risco de criar um vácuo de poder que os Estados Unidos
não estavam dispostos a gerir in loco
mediante uma ocupação, como no Iraque. Em vez disso, a intenção era sinalizar
ao governo sírio que os Estados Unidos estavam zangados...
A ameaça de guerra é útil
apenas quando a ameaça é real e significativa. Tal ameaça, no entanto, foi
concebida para ser insignificante. Alguma coisa seria destruída, mas não seriam
as armas químicas do regime ou o regime em si. Como gesto, portanto, o que
Obama sinalizou não é que era perigoso provocar a ira dos EUA, mas sim o fato
de que não dar bola para Washington não traz consequências significativas. Os
EUA são extremamente poderosos militarmente e suas ameaças de guerra deveriam
assustar, mas, ao invés disso, o presidente optou por pintar tal ameaça de tal
forma que seria seguro ignorá-la.
EVITAR A AÇÃO MILITAR
Com toda a franqueza, ficou
claro no início que Obama não queria uma ação militar contra a Síria. Duas
semanas atrás eu escrevi que esta era "uma comédia em três atos: o guerreiro
relutante se tornando num general furioso e encontrando seus seguidores se
dispersando, e voltando de novo a ser um guerreiro relutante”. Na semana
passada, em Genebra, o guerreiro relutante reapareceu, pôs de lado suas armas e
prometeu não atacar a Síria.
Quando tomou posse, Obama não
queria se envolver em qualquer guerra. Seu objetivo era aumentar o limiar para
uma ação militar muito maior do que tinha sido, desde o final da Guerra Fria,
quando operações militares “Tempestade no Deserto” no Iraque, na Somália, no
Kosovo e no Afeganistão, além de outras intervenções menores, indicaram um
padrão habitual da política externa dos EUA. Quaisquer que tivessem sido as
justificativas para qualquer dessas operações bélicas, Obama viu os EUA como
sobrecarregados pelo tempo e custo da guerra. Ele pretendia livrar o país desse
belicismo caro e nem sempre compensador e passar a desempenhar um papel menor na
gestão do sistema internacional. No máximo, ele pretendia fazer parte de uma
coalizão de nações, e não praticamente o único líder e, quase sempre, um ator
solitário.
Claramente, ele considerou não
seguir esse novo padrão na Síria, apesar de toda a movimentação de forças no
Mediterrâneo ao largo da costa do país ameaçado. Ele estava na iminência de se
envolver numa guerra civil, na qual os EUA não têm um lado favorito a apoiar e
não têm sido bem-sucedidos em impor a sua vontade em tais conflitos internos no
Oriente Médio. Washington tem uma longa história de hostilidade contra o regime
de al Assad, mas também é hostil aos rebeldes, que – embora possam ter alguns
democratas constitucionais entre suas fileiras – têm cada vez mais caído sob a
influência de jihadistas radicais, como é o caso da Irmandade Muçulmana.
Possibilitar a criação de um
novo Estado-nação islamofascista como o do Irã, por exemplo, com base nessas
facções seria recriar a ameaça representada pelo Afeganistão que levou ao 11 de
setembro de 2001, e fazer isso num país que faz fronteira com a Turquia, o
Iraque, a Jordânia, Israel e Líbano, seria altamente temerário.
A menos que os Estados Unidos
estivessem preparados para novamente perpetrar uma ocupação e construir um novo
país conforme seus interesses, a escolha de Washington teria que ser
"diferente de qualquer das anteriores".
A estratégia e as especificidades
da Síria, ambas questionadas pela distância americana, fizeram com que Obama
seguisse essa lógica. Já que armas químicas foram usadas, no entanto, o
raciocínio mudou e duas razões explicam esta mudança.
ARMAS DE DESTRUIÇÃO EM MASSA (ADM) E INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA
A primeira consistiu nas
preocupações estadunidenses com relação às ADMs. Desde o início da Guerra Fria
até o momento atual, o medo das armas nucleares tem assombrado o psiquismo
americano. Alguns diriam que tal esquisitice atribuída aos EUA é proveniente do
fato de ter sido o único país a usar bombas atômicas em conflitos bélicos. Acho
que é precisamente por causa disso. Entre Hiroshima e a certeza de destruição
mútua, houve uma razoável aversão às consequências de uma guerra nuclear. Pearl
Harbor tinha criado o medo de que uma guerra pudesse eclodir de modo inesperado
e a qualquer momento, e a íntima consciência de que Hiroshima e Nagasaki pudessem
gerar o medo de uma súbita aniquilação dos EUA.
Outras armas capazes de
aniquilação em massa de populações se juntaram às armas nucleares,
principalmente as químicas e biológicas. Robert Oppenheimer, que supervisionou
o trabalho científico do Projeto Manhattan, empregou o termo "arma de
destruição em massa" para designar uma classe de armas capazes de causar
destruição na escala de Hiroshima e além, uma categoria que pode incluir armas
químicas e biológicas, que eventualmente podem tornar a Terra um local
inabitável.
O conceito de armas de
destruição em massa, eventualmente, passou de "destruição em massa"
para o de “arma” em si. O uso e até mesmo a posse de tais armas por atores que
anteriormente não as possuíam, passou a ser visto como uma ameaça para os
Estados Unidos. O limiar de destruição em massa deixou de ser a medida
significativa e, em vez disso, a causa da morte de tal ataque ocupou o centro
das atenções. Dezenas de milhares de pessoas morreram na guerra civil da Síria.
A única diferença nas mortes que levaram às ameaças de Obama foi a de que muitas
delas foram causadas por armas químicas. Apenas essa distinção foi suficiente
para mudar a estratégia da política externa dos EUA na região.
A segunda causa dessa mudança
de estratégia dos EUA é a mais importante. Todas as administrações americanas
têm tido uma tendência de pensar ideologicamente, e há uma forte inclinação
ideológica presente na administração Obama que sente que o poder militar dos
EUA deveria ser usado para impedir genocídios. Este sentimento remonta à
Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto, e se tornou particularmente intenso com
relação a Ruanda e à Bósnia, onde muitos acreditam que os Estados Unidos
poderiam ter evitado o assassinato em massa. Muitos defensores da intervenção
norte-americana em operações humanitárias e que se opõem ao uso da força
militar em outras circunstâncias, consideram a sua utilização como um
imperativo moral para impedir o assassinato em massa.
O medo combinado de armas de
ADMs com a “ideologia de intervenção humanitária” tornou-se uma força
resultante irresistível para Obama. A chave para esse processo foi a de que a
definição de genocídio e a definição de destruição em massa havia tanto se
deslocado e de tal forma que a morte de menos de mil pessoas numa guerra que já
custou dezenas de milhares de vidas resultou em demandas por intervenção por
ambos os motivos.
A pressão sobre Obama cresceu
dentro de sua administração por parte daqueles que estavam preocupados com o
uso de ADMs e daqueles que viram outra trama semelhante em Ruanda. O limiar
para a “intervenção moralmente obrigatória” era baixa e acabou por ser
cancelado, com o limite estratégico sendo muito amplo do que a ‘linha vermelha’
estabelecida por Obama, uma vez que ele não queria saber de se envolver na
Síria como se envolveu no Iraque e no Afeganistão, ou na Líbia. Mas a ideologia
das ADMs e a ideologia de “intervenção humanitária” obrigaram-no a mudar o
discurso.
UM EQUILÍBRIO IMPOSSÍVEL
Obama tentou encontrar um
equilíbrio onde não havia qualquer equilíbrio, entre a sua estratégia que ditou
a não intervenção e de sua ideologia que exigiu que algo seja feito. Sua
solução foi ameaçar em voz alta com uma ação militar que ele e seu secretário
de Estado tanto indicaram que seria mínima. A ameaça de ação despertou pouco
interesse do regime sírio, que luta uma guerra sangrenta de dois anos. Enquanto
isso, os russos, que buscavam ganhar posição na região, resistindo aos EUA,
algo que Washington pinta como irresponsável e unilateral.
Obama quer tudo isso para
simplesmente dizer que fez o que tinha de ser feito e ir dormir, mas ele
precisa de alguma garantia de que as armas químicas da Síria sejam postas sob
controle internacional e mesmo serem destruídas. Para isso, ele precisa de
aliados de al Assad, dos russos, e da promessa de que concordam com isso. Sem
tais garantias, ele teria sido forçado a tomar uma ação militar ineficaz,
apesar de não querer.
Portanto, a fase final da
comédia encenada em Genebra, o local da sepultura dos encontros da Guerra Fria
(é estranho que Obama tenha aceitado este local dado o seu simbolismo), onde os
russos concordaram em, de alguma forma não especificada e num período de tempo incerto,
fazer algo sobre as armas químicas da Síria. Obama prometeu não tomar medidas
que teriam sido ineficazes de qualquer maneira, e que tudo chegaria ao fim,
permitindo que Assad continuasse a matar seu próprio povo, desde que por “meios
convencionais”.
No final, este acordo será
significativo se vier a ser posto em funcionamento. Tomar o controle de 50
locais de arsenal químico no meio de uma guerra civil, obviamente, levanta
algumas questões técnicas sobre a sua factibilidade. O núcleo do negócio é,
obviamente, completamente vago. No centro dele, os EUA concordaram em não pedir
ao Conselho de Segurança da ONU permissão para atacar no caso dos sírios
deixarem de cumprir a sua parte. Também não esclarece os meios para avaliar e
garantir as armas químicas da Síria, tanto em qualidade quanto em quantidade.
Os detalhes do plano provavelmente irão acabar rasgando-o no final. Mas a
questão do não era propriamente lidar com as armas químicas, mas era a de
ganhar tempo e liberar os EUA de seu compromisso de bombardear alguma coisa na
Síria.
Houve, sem dúvida, outros
assuntos que foram discutidos, incluindo o futuro da Síria. Ambos, os EUA e a
Rússia, querem que o regime de al Assad continue, e que este bloqueie os
sunitas. Ambos querem o fim da guerra civil, os norte-americanos para reduzir a
pressão sobre si no sentido de ajudar os sunitas e, os russos, para reduzir as
chances de o regime de al Assad entre em colapso. Permitir que a Síria se torne
outro Líbano (historicamente são um país) com vários senhores da guerra – ou,
mais precisamente reconhecendo que isso já aconteceu – é o resultado lógico de
tudo isso.
CONSEQUÊNCIAS
Globalmente, o resultado mais
importante é que os russos se sentaram com os norte-americanos como iguais,
pela primeira vez desde o colapso da União Soviética. Na verdade, os russos se
sentaram como mentores, posicionando-se e aparecendo para instruir os imaturos
americanos na gestão de crises. Para tal efeito, o editorial e opinião de Putin
no jornal The New York Times foi brilhante.
Isto não deve ser visto apenas
como meras imagens: a imagem dos russos forçando os americanos a recuarem
ressoa em toda a periferia russa. Nos ex-satélites soviéticos, na completa
desordem europeia, no tocante a esta e outras questões. A vacilação dos EUA e o
simbolismo de Kerry e Lavrov negociando de igual para igual vão moldar o
comportamento internacional por um bom tempo.
Também será o caso de países
como o Azerbaijão, uma alternativa fundamental para a energia russa que faz
fronteira com a Rússia e o Irã. O Azerbaijão enfrenta uma segunda consequência
da ideologia do governo, que vimos durante a Primavera Árabe. A administração
Obama tem demonstrado uma tendência para julgar regimes que são potenciais
aliados na base dos direitos humanos, sem uma análise cuidadosa sobre se a
alternativa poderia ser muito pior. Juntamente com uma imagem de fraqueza, isso
poderia causar a países como o Azerbaijão reconsiderarem suas posições
vis-à-vis dos russos.
O alinhamento de princípios
morais com a estratégia nacional não é fácil de ser obtido e, na melhor das
circunstâncias, as ideologias tendem a ser mais sedutoras em termos gerais, mas
não tão coerentes em casos específicos. Isto é verdade em todo o espectro
político, mas particularmente intenso na administração Obama, onde as ideias de
intervenção humanitária, o absolutismo dos direitos humanos, e a oposição às
ADMs colidem com uma estratégia de limitar o envolvimento dos EUA –
particularmente o envolvimento militar – no mundo. As ideologias acabam exigindo
julgamentos e ações que a estratégia rejeita.
O resultado é o que vimos no
mês passado em relação à Síria: a tensão constante entre a ideologia e a
estratégia que fez com que a administração Obama procurasse modos e maneiras de
fazer as coisas contraditórias. Este não é um fenômeno novo nos Estados Unidos,
e este caso não reduz o seu poder objetivo, mas cria uma sensação de incerteza
sobre o que exatamente os Estados Unidos pretendem e pretenderão fazer no
futuro em situações parecidas que fatalmente surgirão não apenas no Oriente
Médio, mas em qualquer outro lugar do cenário internacional. Quando isso
acontecer num país menor, a problemática não será de tirar o sono de ninguém.
Mas se isso ocorrer com uma grande potência, aí a coisa poderá se tornar muito
perigosa.
Título e Texto: George Friedman, Stratfor,
17-9-2013
Tradução: Francisco Vianna
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