Grandes economistas, sobretudo
americanos, têm vindo a criticar o que chamam a opção europeia pela
austeridade. Surge a situação insólita de ver prémios Nobel concordar com
extremistas políticos ou blogues inflamados. É curioso ter Joseph Stiglitz e
Jerónimo de Sousa do mesmo lado. Como explicar o paradoxo?
Existe um mal-entendido de
palavras. Quando falam de austeridade, os opinadores populares referem os
cortes que nos impedem de viver como vivíamos antes da crise. Ora isso é um
irrealismo, pois a situação anterior à crise era insustentável, como podemos
constatar... pela crise.
O problema é endividamento. De
2001 a 2010, Portugal gastou mais 9% do que produzia (o défice externo),
atingindo em 2013 uma dívida externa bruta de 236% do PIB, uma das maiores do
mundo. Este é o núcleo da dificuldade, que as conversas de café, os blogues e
os comícios normalmente omitem. Só para tapar a fuga e equilibrar as contas, o
aperto é forte e, dado a ilusão ter sido longa, são velhos os hábitos a mudar.
Como além de estancar a sangria é preciso pagar juros e ir amortizando a
dívida, o sofrimento será grande e demorado.
Como os analistas ocasionais
atribuem o esbanjamento a corruptos, incompetentes e bandidos, consideram-se
isentos da austeridade; ela devia existir, mas para outros. Isso é também
irrealismo. Um buraco destes nunca podia ter apenas culpados individuais ou
sequer sectoriais nem seria resolúvel sem sacrifício nacional. A origem da
crise foi o longo clima de facilidade em que todos, mais ou menos, participámos
voluntariamente. Procurar responsáveis é compreensível no meio da fúria, mas
todos beneficiámos e todos temos de pagar.
A análise dos tais cientistas
não cai nestes erros e é mais subtil, embora omita um decisivo detalhe lateral.
Uma situação de endividamento como a nossa traz sempre um terrível dilema. Se o
credor exigir pagamento imediato, estrangula o devedor e perdem os dois. Seria
melhor dar tempo para pôr a casa em ordem, recuperar a produção, beneficiando
todos com a prosperidade. Isto é o que aconselham os professores famosos,
insurgindo-se contra o FMI e a política europeia que criaram a miséria grega e
portuguesa. Acusam o programa de ajustamento de gerar a recessão na União, que
impede a remissão dos créditos. Esta opinião é sólida e verdadeira, mas ignora
o aspecto político, que complica muito a linearidade do impecável raciocínio
financeiro.
De facto, a receita de
benevolência que recomendam é seguida há muito na Europa. Pode mesmo dizer-se
que foi ela que nos meteu no sarilho. Porque o sinal de alarme financeiro não
soou em 2011, ou sequer em 2008. Portugal foi o primeiro país do euro a violar
o Pacto de Estabilidade, logo em 2001, e a Grécia já o violava muito antes de
entrar. Era patente que a dívida estava numa trajectória insustentável. Mas a União
Europeia decidiu dar tempo para os devedores porem a casa em ordem, recuperarem
a produção, ganhando todos com a prosperidade. Essa benevolência foi pretexto
para mais esbanjamento, fingindo e criar emprego e gerar produção. Conhecemos
muito bem por cá esta fantasia.
Isto leva-nos ao verdadeiro
núcleo da dificuldade. A actual recessão não vem sobretudo da globalização, da
corrupção ou da incompetência política. O problema europeu não é essencialmente
fiscal, financeiro ou sequer económico. É de confiança. Os países com excedente
não acreditam nos deficitários, que há muito abusam. Exigem provas de seriedade
antes de os aliviarem. Pelo seu lado, os endividados irritam-se com a falta de
solidariedade e desconfiam da unidade europeia. Todos têm razão. A cura da
terrível doença da suspeita é muito pior do que memorandos ou reformas do
Estado. E a fúria popular agrava tudo.
A troika interveio quando se
esgotou a paciência dos credores e a reputação dos devedores. Impôs forte
aperto só para equilibrar as contas e tapar a fuga que, ao fim de três anos e
muitos esforços, o Governo não conseguiu. E ninguém acredita que consiga. O que
falta é muito mais raro e precioso do que dinheiro. É credibilidade.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 16-9-2013
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