Ernesto Ribeiro Barbosa
Repetindo um chavão: a
História dos seriados de TV se divide em antes e depois de Miami Vice – TODOS eles, e não só os policiais. A obra-prima da arte
pop que mudou todos os conceitos da produção televisiva de maneira tão radical
e revolucionária que só pode ser comparada à revolução de Matrix no
cinema. Foi um impacto profundo e uma mudança total na forma e no conteúdo.
Mais do que isso: Miami Vice filtrou a cultura de seu tempo e tornou-se
o epítome de tudo o que havia de bom e melhor nos anos 1980. Foi a
Grande Criação que espelhou e definiu a estética (e o espírito) de sua época.
Se quer saber o que foi o zeitgeist daquela década insuperável,
assista a um episódio.
O produtor Michael Mann é
mesmo um iluminado. O que o cara fez foi quebrar a velha dicotomia entre popular
e artístico e criar um novo conceito de cinema feito pela TV em
um nível de qualidade e ousadia que ninguém jamais alcançou, antes ou depois.
Os velhos clichês que engessavam o formato da telinha foram todos implodidos, e
a modernidade finalmente chegou. Sim: Miami Vice é o primeiro seriado de
TV absolutamente moderno — sem ser modernoso — com todas as
qualidades da arte cinematográfica em produção televisiva. Ninguém nunca
viu coisa parecida.
O Marco Zero estreou em 1984. A série teve o seu auge quando cada
episódio chegou a custar 1 milhão de dólares, batendo recordes de audiência
sucessivos em 5 temporadas. Inovou até na técnica sonora: foi a 1ª produção
televisiva a ser transmitida em som esterefônico. Era toda mixada em stereo. A
fotografia é esplêndida, em cores tropicais. A revista People afirmou
com todas as letras que “Miami Vice é o primeiro show de TV que parece realmente
novo e inventivo desde que a televisão a cores foi inventada.”
Isso porque foi um evento
superlativo em tudo: Miami Vice era ao mesmo tempo inteligente e
popular, realista e sofisticado,
genial e super-produzido. Isso fundiu a cuca
dos cri-críticos. Ninguém estava preparado para essa concepção. O que o povão
estava acostumado a ver eram séries cafonas e cretinas de tão vazias, que
logo saíam de moda e caíam no esquecimento de tão datadas no lixo da história (A
Super-Máquina, Casal 20, Dallas, argh…) Ou a crítica
redescobrir algo genial, mas sub-produzido que logo morria de inanição e
cancelado por falta de audiência (Jornada nas Estrelas nos anos 1960 subviveu
por 3 temporadas sob as mais duras penas). Com Miami Vice, Michael Mann
pôs fim a esse dilema. Foi o maior salto de qualidade que o telespectador já
assistiu.
Bem-vindo ao mundo decadente de Miami – a cidade-chave do tráfico internacional, a porta de entrada das drogas na América, o ponto de encontro entre os produtores do Terceiro Mundo com os consumidores do Primeiro. A ostentação de riqueza na extravagância brega latina, mesclando-se à sobriedade anglo-saxônica. Milhões de hispânicos e exilados cubanos misturando-se á civilização americana dos arranha-céus.
A natureza tropical da Flórida
sendo desbravada por caçadores de ambos os lados da lei.
É claro: para ser convincente,
a própria realidade intervinha na concepção da série.
É aí que entra o realismo —
e ela se torna superlativa. Assim, Miami Vice mudou
a História da TV por ser o 1° seriado a ter tanto:
Sexo —
Se os heróis de antigamente eram todos uns assexuados que só
viviam para o trabalho, em Miami Vice todo mundo é charmoso,
sensual, sexy — sem chegar ao erotismo ou cair na vulgaridade. O charme é
mais do que uma arma. Esta série transpira sensualidade. As pessoas têm uma vida real, o que inclui uma
vida sexual séria e até problemática… com conversas de cama e tudo mais. Mas
sempre excitante.
Drogas —
Montanhas de cocaína se dispersando em nuvens ao vento, montes de pó jogados na
privada durante uma batida. Heroína viciando até as namoradas dos heróis, se
picando nos banheiros das boates ou nas mansões em estilo espanhol. Lanchas e
helicópteros transportando a mercadoria às toneladas. Mesmo os tiras
disfarçados faziam testes de pureza com a droga e reclamavam: “Não está nem 80%
pura.”
Violência
— Brutal ou estilizada, com tiroteios em câmera
lenta, usando a técnica de cinema dos filmes de Sam Peckinpah. Quando a ação
explode, é como um balé frenético de violência estilizada. O sangue é o
bastante. Mas as feridas emocionais são as que nunca fecham.
Palavrões —
Miami Vice trouxe a linguagem das ruas à TV. A linguagem
chula e despojada, os diálogos cortantes e naturais, com uma fluência chocante.
Um que é inesquecível é a discussão do galã Don Johnson com a namorada viciada
em drogas: “Que porra é essa de você tentar esconder de mim que deve alguma
coisa praquele verme que tá lhe vendendo essa merda só pra te usar? Você só
conseguiu enganar a si mesma, cacete, e esse lance todo de chantagem só tá
fodendo a tua vida!”
Corrupção —
Jamais houve tantos agentes da lei se vendendo aos
borbotões. Tinha traidores saindo pelo ladrão a cada episódio. Mas não era uma
caricatura grotesca e sem sentido, como nossos políticos. Tudo tinha explicação.
Policiais se vendiam aos traficantes para poderem pagar os estudos dos filhos,
ou a cirurgia caríssima da esposa. Você via os corruptos como seres humanos,
não monstros – e entendia suas motivações.
Impunidade —
Era inevitável: Miami, a metrópole mais latina dos EUA, porta de
entrada do maior mercado de drogas do mundo, ponto de encontro dos reis do
tráfico internacional, com fortunas absurdas e subornos milionários comprando
desde o carcereiro da delegacia até os chefes de polícia. Como não
haveria criminosos impunes num seriado realista? Pois é: em Miami Vice
ás vezes os mafiosos conseguem escapar sem pagar por seus crimes. Quando os
bandidos fogem de hidroavião, é para voltar em outro episódio — e
aí, mermão, já é um caso pessoal. Como o detetive Ricardo Tubbs — que
perdeu o irmão, o filho e a esposa por ordem de um barão chefe de um império do
tráfico, que ainda escapou no episódio piloto. O tira partiu pra vingança
na temporada seguinte, fazendo a justiça com as próprias mãos. A vendetta
gerou uma guerra com a família do traficante — o que
levou a outro banho de sangue, num episódio que homenageia o clássico Matar
ou Morrer.
Não adianta a Lei prender
(quando prende) que a Justiça solta (quando não molham a mão dos guardas). Só
matando mesmo. Bandido bom é bandido morto.
Sofisticação —
Miami Vice trouxe a modernidade à TV de forma jamais
concebida. As tramas são anti-convencionais (como aliás tudo ali) com nuances
psicológicas. Todos os personagens têm um passado, uma história e
uma vida interior exalando conflitos internos. Como o frio e austero chefe da
Divisão de Detetives Miami Vice, o latino tenente Martin Castillo (Edward
Olmos, lacônico e perfeito!), a imigrante cubana Gina Navarro (Saundra
Santiago) ou a espiã negra Booty Trudy (Olivia Brown). Os atores levam seus
personagens muito a sério. Nada era forçado ou empostado, numa interpretação
espontânea e naturalista. Os detetives disfarçados Sonny Crockett (Don Johnson)
e Ricardo Tubbs (Phillip Michael Thomas) quebraram tabus. Além de escaparem do
estereótipo do policial frio e distante, ao interagirem como gente das ruas,
eles também surpreenderam pela química na atuação, ao quebrar o tabu racial: um
protagonista negro igualmente importante, sensual e elegante, e até mais
sofisticado. Ambos são símbolos sexuais. E houve episódios estrelados apenas
por Tubbs.
Título e Texto: Ernesto Ribeiro Barbosa, 20-9-2013
Gostei muito do seu artigo.
ResponderExcluirSou colecionador da série. Gravava em VHS na época e a tenho em DVD.
Ainda hoje, sendo reprisada no canal a cabo TCM, é muito interessante assistir a alguns episódios e verificar que tudo foi copiado a partir de Miami Vice. Filmagens externas acompanhadas de trilhas sonoras originais de excelente gosto. Éles iniciaram isso há 30 anos atrás e ainda é copiado, e mal copiado, nos seriados atuais. Sem falar que não houve outra série com carisma semelhante dos protagonistas.
Meu caro Rogerio Correa, a melhor parte da história é que... essa postagem do site O cão que fuma é apenas a primeira parte da história. O texto de meu artigo COMPLETO sobre Miami Vice é 3 vezes maior, e com muito mais fotos. Para receber a versão original inteira e muitos outros artigos ilustrados meus sobre Cultura Pop (Música, Cinema, TV, Rock, etc) basta me mandar uma mensagem de e-mail e eu cadastro o seu na minha Lista Automática de Destinatários.
ExcluirAbraço,
Ernesto Ribeiro
Publicitário, Jornalista e Escritor
bauer7973@yahoo.com.br