sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Quando a arte se tornou descaradamente pop — e vice-versa


Ernesto Ribeiro Barbosa
Repetindo um chavão: a História dos seriados de TV se divide em antes e depois de Miami Vice TODOS eles, e não só os policiais. A obra-prima da arte pop que mudou todos os conceitos da produção televisiva de maneira tão radical e revolucionária que só pode ser comparada à revolução de Matrix no cinema. Foi um impacto profundo e uma mudança total na forma e no conteúdo. Mais do que isso: Miami Vice filtrou a cultura de seu tempo e tornou-se o epítome de tudo o que havia de bom e melhor nos anos 1980. Foi a Grande Criação que espelhou e definiu a estética (e o espírito) de sua época. Se quer saber o que foi o zeitgeist  daquela década insuperável, assista a um episódio.  

O produtor Michael Mann é mesmo um iluminado. O que o cara fez foi quebrar a velha dicotomia entre popular e artístico e criar um novo conceito de cinema feito pela TV em um nível de qualidade e ousadia que ninguém jamais alcançou, antes ou depois. Os velhos clichês que engessavam o formato da telinha foram todos implodidos, e a modernidade finalmente chegou. Sim: Miami Vice é o primeiro seriado de TV absolutamente moderno —  sem ser modernoso —  com todas as qualidades da arte cinematográfica em produção televisiva. Ninguém nunca viu coisa parecida. 


O Marco Zero estreou em 1984. A série teve o seu auge quando cada episódio chegou a custar 1 milhão de dólares, batendo recordes de audiência sucessivos em 5 temporadas. Inovou até na técnica sonora: foi a 1ª produção televisiva a ser transmitida em som esterefônico. Era toda mixada em stereo. A fotografia é esplêndida, em cores tropicais. A revista People afirmou com todas as letras que “Miami Vice é o primeiro show de TV que parece realmente  novo e inventivo desde que a televisão a cores foi inventada.”  

Isso porque foi um evento superlativo em tudo: Miami Vice era ao mesmo tempo inteligente  e  popular, realista  e  sofisticado, genial  e  super-produzido. Isso fundiu a cuca dos cri-críticos. Ninguém estava preparado para essa concepção. O que o povão estava acostumado a ver eram séries cafonas e cretinas de tão vazias, que logo saíam de moda e caíam no esquecimento de tão datadas no lixo da história (A Super-Máquina, Casal 20, Dallas, argh) Ou a crítica redescobrir algo genial, mas sub-produzido que logo morria de inanição e cancelado por falta de audiência (Jornada nas Estrelas nos anos 1960 subviveu por 3 temporadas sob as mais duras penas). Com Miami Vice, Michael Mann pôs fim a esse dilema. Foi o maior salto de qualidade que o telespectador já assistiu.

Bem-vindo ao mundo decadente de Miami – a cidade-chave do tráfico internacional, a porta de entrada das drogas na América, o ponto de encontro entre os produtores do Terceiro Mundo com os consumidores do Primeiro. A ostentação de riqueza na extravagância brega latina, mesclando-se à sobriedade anglo-saxônica. Milhões de hispânicos e exilados cubanos misturando-se á civilização americana dos arranha-céus.
A natureza tropical da Flórida sendo desbravada por caçadores de ambos os lados da lei.  

É claro: para ser convincente, a própria realidade intervinha na concepção da série.
É aí que entra o realismo  —  e ela se torna superlativa. Assim, Miami Vice mudou a História da TV por ser o 1° seriado a ter tanto:  

Sexo   —   Se os heróis de antigamente eram todos uns assexuados que só viviam para o trabalho, em Miami Vice  todo mundo é charmoso, sensual, sexy —  sem chegar ao erotismo ou cair na vulgaridade. O charme é mais do que uma arma. Esta série transpira sensualidade.  As pessoas têm uma vida real, o que inclui uma vida sexual séria e até problemática… com conversas de cama e tudo mais. Mas sempre excitante.  

Drogas   —   Montanhas de cocaína se dispersando em nuvens ao vento, montes de pó jogados na privada durante uma batida. Heroína viciando até as namoradas dos heróis, se picando nos banheiros das boates ou nas mansões em estilo espanhol. Lanchas e helicópteros transportando a mercadoria às toneladas. Mesmo os tiras disfarçados faziam testes de pureza com a droga e reclamavam: “Não está nem 80% pura.”  

Violência   —   Brutal ou estilizada, com tiroteios em câmera lenta, usando a técnica de cinema dos filmes de Sam Peckinpah. Quando a ação explode, é como um balé frenético de violência estilizada. O sangue é o bastante. Mas as feridas emocionais são as que nunca fecham. 

Palavrões   —   Miami Vice  trouxe a linguagem das ruas à TV. A linguagem chula e despojada, os diálogos cortantes e naturais, com uma fluência chocante. Um que é inesquecível é a discussão do galã Don Johnson com a namorada viciada em drogas: “Que porra é essa de você tentar esconder de mim que deve alguma coisa praquele verme que tá lhe vendendo essa merda só pra te usar? Você só conseguiu enganar a si mesma, cacete, e esse lance todo de chantagem só tá fodendo a tua vida!” 

Corrupção    Jamais houve tantos agentes da lei se vendendo aos borbotões. Tinha traidores saindo pelo ladrão a cada episódio. Mas não era uma caricatura grotesca e sem sentido, como nossos políticos. Tudo tinha explicação. Policiais se vendiam aos traficantes para poderem pagar os estudos dos filhos, ou a cirurgia caríssima da esposa. Você via os corruptos como seres humanos, não monstros – e entendia suas motivações.

O bandidão Bruce Willis rindo da lei
Impunidade   —   Era inevitável: Miami, a metrópole mais latina dos EUA, porta de entrada do maior mercado de drogas do mundo, ponto de encontro dos reis do tráfico internacional, com fortunas absurdas e subornos milionários comprando desde o carcereiro da delegacia até os chefes de polícia. Como não haveria criminosos impunes num seriado realista? Pois é: em Miami Vice  ás vezes os mafiosos conseguem escapar sem pagar por seus crimes. Quando os bandidos fogem de hidroavião, é para voltar em outro episódio  —  e aí, mermão, já é um caso pessoal. Como o detetive Ricardo Tubbs   que perdeu o irmão, o filho e a esposa por ordem de um barão chefe de um império do tráfico, que ainda escapou no episódio piloto. O tira partiu pra vingança na temporada seguinte, fazendo a justiça com as próprias mãos. A vendetta gerou uma guerra com a família do traficante   o que levou a outro banho de sangue, num episódio que homenageia o clássico Matar ou Morrer. 
Não adianta a Lei prender (quando prende) que a Justiça solta (quando não molham a mão dos guardas). Só matando mesmo. Bandido bom é bandido morto. 


Sofisticação  —  Miami Vice  trouxe a modernidade à TV de forma jamais concebida. As tramas são anti-convencionais (como aliás tudo ali) com nuances psicológicas. Todos os personagens têm um passado, uma história e uma vida interior exalando conflitos internos. Como o frio e austero chefe da Divisão de Detetives Miami Vice, o latino tenente Martin Castillo (Edward Olmos, lacônico e perfeito!), a imigrante cubana Gina Navarro (Saundra Santiago) ou a espiã negra Booty Trudy (Olivia Brown). Os atores levam seus personagens muito a sério. Nada era forçado ou empostado, numa interpretação espontânea e naturalista. Os detetives disfarçados Sonny Crockett (Don Johnson) e Ricardo Tubbs (Phillip Michael Thomas) quebraram tabus. Além de escaparem do estereótipo do policial frio e distante, ao interagirem como gente das ruas, eles também surpreenderam pela química na atuação, ao quebrar o tabu racial: um protagonista negro igualmente importante, sensual e elegante, e até mais sofisticado. Ambos são símbolos sexuais. E houve episódios estrelados apenas por Tubbs.
Título e Texto: Ernesto Ribeiro Barbosa, 20-9-2013

2 comentários:

  1. Gostei muito do seu artigo.
    Sou colecionador da série. Gravava em VHS na época e a tenho em DVD.
    Ainda hoje, sendo reprisada no canal a cabo TCM, é muito interessante assistir a alguns episódios e verificar que tudo foi copiado a partir de Miami Vice. Filmagens externas acompanhadas de trilhas sonoras originais de excelente gosto. Éles iniciaram isso há 30 anos atrás e ainda é copiado, e mal copiado, nos seriados atuais. Sem falar que não houve outra série com carisma semelhante dos protagonistas.

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    1. Meu caro Rogerio Correa, a melhor parte da história é que... essa postagem do site O cão que fuma é apenas a primeira parte da história. O texto de meu artigo COMPLETO sobre Miami Vice é 3 vezes maior, e com muito mais fotos. Para receber a versão original inteira e muitos outros artigos ilustrados meus sobre Cultura Pop (Música, Cinema, TV, Rock, etc) basta me mandar uma mensagem de e-mail e eu cadastro o seu na minha Lista Automática de Destinatários.

      Abraço,

      Ernesto Ribeiro

      Publicitário, Jornalista e Escritor

      bauer7973@yahoo.com.br

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