Rodrigo Constantino
Se um pai que ama seu filho
soubesse que ele anda com problemas com drogas, como deveria agir? Tapar o sol
com a peneira e fingir que o problema não existe? Jogar a dura realidade para
baixo do tapete e viver num conto de fadas, numa ilusão? Parece absurdo, certo?
Mas tem gente que acha que não devemos criticar tanto nossa cidade ou nosso
país, pois isso seria “complexo de vira-latas”.
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Com camisa de “condutor de
visitante”, vendedor negocia ingresso fora da bilheteria com turista: bilhete
chega a custar R$ 100, enquanto valor oficial é de R$ 35. Foto: Pablo
Jacob/Agência O Globo
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Discordo: complexo de
vira-latas é não poder conviver com as críticas e precisar dourar a pílula,
para fingir que nossa cidade é “apenas diferente”, e não uma porcaria. Falar
mal dos Estados Unidos e defender o Rio, por exemplo, isso é complexo de inferioridade.
Se a verdade é feia, ela precisa ser dita. Afinal, somente assim teremos chance
de mudá-la. Quem aceita o lixo como se fosse diamante vai mesmo viver sempre na
merda.
Digo isso pois costumo pegar
bastante no pé da minha “cidade maravilhosa”. Já fazia isso muito antes de ir
morar fora, o que completou seis meses ontem. As qualidades do Rio, segundo
muita gente, nunca me apeteceram tanto, enquanto os seus defeitos me eram
insuportáveis. A “malandragem” toda, por exemplo, o fato de ser a capital
nacional da esquerda caviar, de votar tão mal em socialistas assumidos, o
jeitinho típico do carioca, tudo isso me fazia (e faz) um mal terrível.
Diante de todos esses
problemas infindáveis, o típico carioca prefere extravasar com samba, futebol e
praia, e achar que as coisas vão simplesmente melhorar um dia, por algum
milagre qualquer. Voltando à analogia do pai do drogado, é como se ele
alimentasse uma esperança vã de que um belo dia, do nada, o viciado fosse
resolver se tornar um trabalhador sério e ser responsável na vida. Não costuma
funcionar.
Hoje mesmo publiquei um texto sobre os taxistas “malandros” que gerou esse tipo de
reação provinciana. Eu não deveria criticar tanto o Rio, a “malandragem”
carioca, pois todos os lugares têm problemas. Mesmo? Claro que perfeição não
existe, mas vamos lidar assim com tantos problemas absurdos? Vamos achar
normal, banalizar o inferno em que o Rio se transformou?
Pois bem: leio agora outra notícia que já não espanta nenhum carioca, e eis o maior problema.
“Malandros” viraram despachantes do Cristo, cobrando um esquema de furar fila
dos gringos “otários”:
Desde
que a prefeitura tentou organizar o ingresso de turistas no Cristo Redentor, em
2013, com a venda de bilhetes pela internet e a implantação de transporte
oficial por vans que vão até o alto do Corcovado, um grupo arrumou um jeitinho
de lucrar com a mudança. Identificando-se como “condutores de visitantes”,
usando crachás e vestindo uniformes para enganar os desavisados, eles vendem
desde lugar na fila da bilheteria do trenzinho até serviço paralelo de
transporte, que, garantem, levaria até o monumento (o que é permitido apenas às
vans regulamentadas). Pelas facilidades, o turista desembolsa de R$ 20 a R$ 100
— ou seja, até 185% a mais que o preço regular mais baixo cobrado, que é R$ 35.
Os
integrantes do grupo abordam visitantes em diferentes pontos, como as
proximidades da estação do trenzinho do Corcovado, no Cosme Velho, e o Largo do
Machado, um dos pontos de onde partem as vans oficiais. Às vezes, tentam
interceptar motoristas ao longo da própria Rua Cosme Velho. A abordagem, que
chega a ser agressiva, assustou o advogado Nilton de Oliveira Canto, morador de
Teresópolis que, no último sábado, visitou o Cristo com a mulher.
—
São vários. Eles corriam na nossa direção, batiam no vidro do carro,
perguntavam se a gente precisava de um guia para facilitar a entrada para ver o
monumento. Eles diziam que, sozinhos, nós levaríamos uma média de três horas na
fila. Achei muito estranha essa facilidade. É preciso ser muito burro para não
entender que ali tem coisa errada — afirmou Nilton, que denunciou a ação ilegal
pelo WhatsApp do GLOBO (99999-9110).
Nessa notícia que parece
insignificante, algo sem tanta importância perto do que enfrenta o país hoje,
está o retrato da cidade, e o motivo pelo qual o Rio não consegue avançar. É
“malandro” demais para “otário” de menos. O jeitinho é nossa marca registrada.
Julgamos otários aqueles que esperam em filas de forma civilizada, que
respeitam as regras.
A sequência de notícias sobre
o Rio continua: Homens armados fazem arrastão em Botafogo.
Três pessoas morrem baleadas após ataque
no Centro. Isso em um único dia de jornal. E o pior: os cariocas passaram a
achar tudo muito normal, pois é parte do seu cotidiano mesmo. “Infelizmente,
isso é normal. Esse foi apenas mais um. Há dois anos, diariamente somos testemunhas
de brigas, pessoas esfaqueadas. Não ando mais pela região depois da oito da
noite. Todo dia isso aqui é um filme de terror”, reclamou um morador.
Fato: o “filme de terror”
passou a ser encarado com naturalidade pelo carioca. E se você aponta para o
absurdo disso morando no exterior, como fez o diretor Zé Padilha recentemente
de Los Angeles, ou como faço eu mesmo de Weston, então é porque sofremos de
“complexo vira-latas”, e perdemos o direito de criticar porque saímos da
cidade. Atacam o mensageiro, não a realidade triste que ele traz!
O Rio tem inúmeros problemas,
e não são problemas comuns de cidades grandes, como alegam os provincianos
anestesiados. São problemas surreais, típicos de um local fracassado dominado
pela bandidagem. E um dos maiores problemas, na raiz de tantos outros, é
justamente essa mentalidade obtusa e provinciana que poupa a “cidade
maravilhosa” das duras e merecidas críticas, só porque o carioca é “malandro”
demais para isso. Não reconhecer com realismo os infindáveis problemas
específicos do Rio é um dos maiores problemas do Rio.
Título e Texto: Rodrigo Constantino, 2-11-2015
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