Maria João Marques
Gosto que os meus filhos, os dois
rapazes, cresçam tendo visto as lágrimas de Ronaldo e sabendo que até perante
milhões se pode mostrar as emoções, daquelas poderosas que nos põem a chorar.
Este ano tinha planeado não
deixar que o Europeu de futebol me solicitasse a atenção. Mas ter um filho de
seis anos – com quem necessito de ter conversas frequentes a explicar por que
não pode ir vestido com o equipamento do Sporting para todo o lado, desde a
escola até aos jantares de Natal – cuja felicidade variava com os sucessos ou
os empates da seleção, obrigou-me a permanecer por períodos de noventa a cento
e vinte minutos a ver jogadores (os portugueses) cujo nome, para a grande
maioria, nunca tinha ouvido. E, em boa verdade, vi lá comportamentos, sobretudo
de Ronaldo, que são boas lições para os meus petizes.
A primeira: as lágrimas do
último jogo. Uma das grandes conquistas civilizacionais da segunda metade do
século XX, ao lado da emancipação feminina e sexual, foi a libertação emocional
dos homens. Até então esperava-se que fossem autómatos controlados, até podiam
ser excêntricos mas nunca emocionais, afeição só se mostrava (como uma
personagem aristocrata explicava num filme inglês há uns anos) aos cães e aos
cavalos, as relações pessoais próximas (com a mulher e os filhos) eram de
autoridade mais que de amor. Desde então, o ar do tempo deu-lhes permissão para
expressões públicas de afeto às suas apaixonadas e para apreciarem os laços com
os filhos que só se formam com o contacto de pele na mudança das fraldas, nos
banhos e no colo das noites em privação de sono.
Claro que a fleuma masculina
era mais propagandística que real. Churchill não tinha pejo em chorar quando
visitava as casas destruídas pelas bombas alemãs no East End de Londres e era
recebido pelo desamparo dos seus antigos habitantes. E nas guerras do século
XIX já há abundantes relatos de condições psicológicas dos combatentes com
sintomas semelhantes à perturbação de stress pós-traumático. Os russos na
Crimeia tiveram milhares de doentes psiquiátricos e na guerra civil americana a
condição era tão comum que até teve direito a nome: soldier’s heart. A
imperturbabilidade perante a morte (própria e alheia) tinha a teimosia de não
corresponder às descrições de Dumas.
Viajemos para 2016. Numa final
de um campeonato europeu, à vista de milhões de curiosos, Ronaldo teve a
liberdade (sim, é de liberdade que se trata) de chorar (primeiro) de
frustração, dor, desconsolo, raiva, tristeza, um sonho que se podia ter
esfumado; e (depois) de alegria, superação, orgulho, assombro por incrivelmente
e inesperadamente acontecer aquilo que sempre se tinha acreditado que
aconteceria.
Gosto que os meus filhos, os
dois rapazes, cresçam tendo visto as lágrimas de Ronaldo e sabendo que até perante
milhões se pode mostrar as emoções, daquelas poderosas que nos põem a chorar. E
que estas emoções fortes e lágrimas – e a exibição das duas – só apequenam os
homens fracos.
A segunda: o ‘que se f@#$’.
Tirando o vernáculo, é mesmo este o espírito que quero ver exibido perante os
meus filhos. Ao contrário do hino por estes dias tão cantado, estamos longes de
ser valentes. Somos temerosos. Odiamos correr riscos porque não conseguimos
lidar com um possível fracasso – como se fracassar não fosse a sina de todos
nós várias vezes na vida. Um líder político que perca eleições ou um treinador
que não ganhe campeonatos tem de ser corrido na hora. Deleitamo-nos com
estatísticas que mostram que as novas empresas falham em números expressivos –
à laia de aviso ‘ninguém de juízo se mete nessa aventura estranha de criar um
negócio’. Até parece que os empresários de sucesso, sem exceção, não tiveram
projetos em que só perderam dinheiro e ganharam traquejo. Temos até vários
partidos políticos – os da geringonça – que veem como ofensiva a promoção do
empreendedorismo.
Pelo que o espírito ‘que se
f%0&’ faz muita falta. Vamos à luta, arriscamos e, se correr mal,
paciência, que se… As cassandras que se calem, as carpideiras que parem de
treinar para a catástrofe que se avizinha, que pior que cairmos picadinhos no
chão é ficarmos na zona de segurança, na mediocridade calculada, perto das
saias da mãe (em se tratando dos meus filhos, claro que estou disponível para
abrir uma brecha nesta teoria) e da boia de salvação.
A terceira lição é de Ronaldo,
com a sua transfiguração em treinador de joelho ligado, mas também do resto da
equipa. Com a velhacaria de Payet, algo verdadeiramente assombroso sucedeu: a
seleção não começou a jogar com o lema ‘pronto, agora já temos desculpa para
podermos perder, que alívio’. E isto, há que reconhecer, quebrou uma vetusta
instituição nacional que é a culpa alheia. Quantas vezes não tínhamos já visto
seleções cheias de divas que, de cada vez que a situação se tornava um
bocadinho menos que a ideal – o mauzão do árbitro roubou-nos, a equipa
adversária só dá cacetada, o que seja –, amuavam, perdiam o norte e pareciam
baratas tontas? E no fim do jogo, claro, o rol de queixumes era quilométrico.
Também na política somos mestres do falhanço por culpa alheia. A bancarrota
Sócrates é filha exclusiva da crise de 2008, claro, nada do desvario dos gastos
públicos socráticos, também estes, de resto, feitos a contragosto a mando da
Comissão Europeia. E é ver o PS a salivar por um Brexit sangrento, ou por sanções
da EU, para poder justificar os seus miseráveis indicadores económicos.
Mas a seleção no domingo não
foi nada disto. Pelo contrário. Deu aos meus filhos essa famosa lição, que
agora é também portuguesa: don’t get mad, get even. Que é como quem diz: não te
enfureças, vinga-te. De preferência, digo eu, com umas caneladas nos franceses
e sem luva branca. Esta parte fica para a próxima. Planear a longo prazo também
é uma boa lição.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
13-7-2016
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