Jacinto e Flecha
Um colega narrou-me como
verídico o fato que resumo a seguir.
O provimento de cátedra na
Faculdade de Medicina exigiu do professor Chinaglia a elaboração de uma tese
sobre assunto da sua especialidade. Incluiu nela citações de um cientista de
fama internacional, atribuindo-lhe o qualificativo famigerado. Este
adjetivo constava no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,
predecessor do Aurélio, como significando famoso, dotado de fama, notável,
célebre; mas não mencionava o sentido pejorativo – mal-afamado, infame
– apesar de ser esta a acepção mais usada na linguagem corrente, talvez a única
conhecida pela maioria das pessoas.
A inclusão do adjetivo na tese
era uma “casca de banana” proposital, e coube a um dos examinadores,
catedrático baiano, protestar enfaticamente contra essa referência pejorativa
ao tão renomado cientista. Em sua defesa, Chinaglia declarou-se surpreso com a
censura do examinador, em seguida leu todo o verbete no dicionário, que tivera
o cuidado de levar consigo. Conquistou a cátedra, mas o troco veio no banquete
em sua homenagem. O loquaz professor baiano encerrou sua saudação com estas
palavras:
—... E quando eu chegar à
Bahia, vou dizer aos meus amigos que tive a grande honra de examinar e aprovar
o famigerado professor Chinaglia.
Por ter dado azo a esse episódio, e principalmente aos comentários que circularam
rapidamente, o dicionarista Aurélio julgou conveniente defender-se na edição
atualizada, embora sem reconhecer a falha. Se tiver tempo e curiosidade,
procure o verbete famigerado e veja a forma habilidosa como ele o fez.
Os significados mais elogiosos
ou pejorativos convivem tacitamente numa mesma palavra ou expressão, e muitas
vezes só se distingue o sentido intencional observando o tom com que foi usada.
O mais ofensivo e infamante xingamento da nossa língua (no inglês, seria bastard)
pode gerar uma briga feroz, ou então uma boa gargalhada dos dois
interlocutores, dependendo do modo como é dito. E creio que o mesmo acontece em
outros países, talvez todos.
Li em um escritor (não me
pergunte o nome) que os americanos têm dificuldade para distinguir entre fama e
notoriedade. De fato, em dicionários de inglês o verbete notorious
inclui significados pejorativos, como também neutros que podem ser tidos como
elogiosos: notório, público, evidente, manifesto; desacreditado, de má fama, de
má reputação; famigerado (eis a casca de banana do Prof. Chinaglia). Nessa
miscelânea de significados, Al Capone e Frank Sinatra seriam igualmente notorious.
Logo depois do atentado contra
o presidente Ronald Reagan, noticiou-se que a intenção do criminoso era causar
boa impressão a uma famosa atriz de cinema. Qual seria, na imaginação dele, o
caminho para esse crime chegar a impressioná-la? Que grosseira distorção mental
teria vinculado na cabeça dele uma coisa com a outra? É certo que ele se
tornaria notorious, como de fato aconteceu. Mas bastaria esse tipo de
notoriedade para ele ser aceito pela atriz? Nunca se sabe, a julgar pelo que
afirma o tal escritor. E é bem possível que haja motivações desse gênero entre
os serial killers e outros criminosos.
Fama e notoriedade se misturam
também na calçada da fama, em Hollywood, onde milhares de lajotas com
características especiais exibem depressões, gravadas cada uma pelo pé de um
figurão cinematográfico. Famigerados de todos os quilates celebrizaram assim os
seus pés. Homenagem estranha, que eu só conceberia para alguém como o Pelé, ou
até o Maradona, talvez o governador Pezão. Mas prefiro não discutir se os
idealizadores dessa homenagem dão mais valor à cabeça ou à pata...
Se as coisas são assim por lá,
não espanta que em Pindorama a confusão de sentidos seja tão generalizada, a
ponto de muitos já estarem considerando famigerados todos os políticos, por
exemplo. O noticiário dos últimos meses dá ampla base para esse conceito, mas acho
muito arriscado generalizar, especialmente quando os famigerados estão no
poder.
Diante desse risco, apresso-me
em declarar que todos os políticos são famigerados em um sentido, mas nem todos
o são também no outro. Deixo assim em paz minha aljava com as flechas, e ao
mesmo tempo me protejo contra eventuais aborrecimentos futuros.
Título e Texto: Jacinto Flecha, médico e colaborador da
ABIM, 5-8-2016
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