Rui Ramos
Catarina Martins não está arrependida,
tal como Jerónimo de Sousa não está arrependido. Não têm uma única razão para
isso. A actual maioria parlamentar foi a maior vitória política do PCP e do BE.
Catarina Martins disse algures
que todos os dias se arrependia da “geringonça”, e a imprensa comoveu-se. Sem
razão. Catarina Martins não está arrependida, tal como Jerónimo de Sousa não
está arrependido. Não têm uma única razão para isso. A actual maioria parlamentar
corresponde ao que o PCP e os partidos que depois engendraram o Bloco de
Esquerda propõem desde 1976. Foi a sua maior vitória política em quarenta anos.
Em 1975, contra a influência
militar do PCP e da “extrema-esquerda”, formou-se em Portugal uma maioria a
favor de uma democracia de tipo ocidental, no quadro da NATO e da integração
europeia. Essa maioria era composta à direita pelo PSD e CDS, e à esquerda pelo
PS. Perante esta maioria democrática, o PCP e depois a extrema-esquerda
desenvolveram duas tácticas: uma consistiu em salvaguardar a ascendência
militar no regime, colando-se ao Conselho da Revolução e ao presidente Eanes,
apesar do papel de Eanes na derrota do militarismo pró-comunista em 1975;
outra, foi a de separar o PS da maioria democrática, aliciando-o para uma
“maioria de esquerda”.
Foi esta segunda táctica que
finalmente resultou no Outono de 2015. O PCP e o BE jaziam então numa situação
crítica. A contestação à “austeridade” não os fizera crescer como o Syriza na
Grécia ou o Podemos em Espanha. O sindicalismo comunista declinava. Mas se as
razões para uma aliança eram boas, as condições foram ainda melhores: o PCP e o
BE não tiveram de renegar nada, e precisaram apenas de se calar sobre alguns
assuntos. Em contrapartida, o PCP salvou os seus sindicatos e voltou a
controlar um ministério, e o BE tem agora um juiz no Tribunal Constitucional.
Perante os partidos da
esquerda democrática, os caminhos dos revolucionários são variados. Na Grécia e
na Espanha, tentaram substituí-los. Na Grã-Bretanha, preferiram tomar por
dentro o Partido Trabalhista. Em Portugal, colaram-se ao PS, aproveitando a
derrota eleitoral de António Costa. Conseguiram assim, até ver, começar a
separar o PS da maioria democrática. O PS partilha hoje a visão que o PCP e o
BE têm do PSD e do CDS, como partidos a excluir. É como se a Frente Nacional,
em França, tivesse destruído a “maioria republicana” que até agora a tem
impedido, não só de chegar ao governo, mas até ao parlamento.
Porque é que tanta gente
admitiu o arrependimento de Martins? Porque ainda é corrente a ideia do PCP e
do BE como “partidos de protesto”, cheios de pruridos perante o poder. É um
equívoco. O PCP e o BE têm sido partidos de protesto porque os eleitores e, até
agora, os outros partidos, não lhes têm deixado ser outra coisa. Mas o protesto
é circunstancial. A sua referência — do PCP e dos partidos que compõem o BE — é
a tradição leninista, que fez do poder a questão central para os
revolucionários. Tudo lhes foi sempre teoricamente permitido para infiltrarem o
Estado. Nada no que Sousa ou Martins fizeram envergonharia os seus mestres
soviéticos.
Tivemos coligações de governo
de partidos muitos alinhados em cena, mas que ameaçaram frequentemente quebrar
nos bastidores, como a de Passos Coelho em Julho de 2013. O actual arranjo
parlamentar funciona de outra maneira: ruídos em palco, entendimento nos
camarins. Nenhum arrependimento vai desmontar a geringonça. Para o país, um
governo dependente do PCP e do BE significa que a austeridade continua, porque
não lhes interessa renunciar ao dinheiro do BCE, mas que nenhuma das mudanças
de contexto, daquelas que poderiam animar a economia, será efectuada. Mas disso
é que eles certamente não estão arrependidos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
26-8-2016
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