José Manuel Fernandes
Telma foi generosa, disse que tinha tido
a "garra" dos portugueses. Antes fosse assim e a nossa regra fosse a
da superação, humildade e querer. Não é. Preferimos sempre dizer: “a culpa não
foi minha”.
Quem nasce num bairro social,
pode aparentemente ter muitas desvantagens, mas também ganha coisas que não têm
preço.
Não sei o que pensarão aí uns
99% dos portugueses de uma frase como esta, mas imagino: quem assim pensa só
pode ser parvo.
Mas prossigamos, que estou a
citar, não a inventar. “Quem vivia naquele meio podia ter dificuldades
monetárias na sua família, como era o meu caso, podia não poder comprar os
ténis de marca, (…) teria até de presenciar situações a que não é normal uma
criança assistir (…), mas uma coisa era certa: para nós havia todo um mundo por
explorar, montes de espaço para descobrir, mil aventuras à nossa espera, e
estava tudo ali, à nossa porta”.
Estas recordações são de Telma
Monteiro, o bairro social a que ela se refere é aquele em que cresceu – o
Bairro Branco, no Monte da Caparica, um daqueles que os jornais costumam
classificar como “problemático” – e as frases que citei estão no livro Na vida com garra, a autobiografia acabada de publicar da judoca
portuguesa que conquistou uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro.
Peguei neste livro – eu que
nem consigo perceber quem ganhou ou quem perdeu um combate de judo… – com uma curiosidade
e um objectivo: tentar perceber o que estava por trás do que Telma Monteiro
disse aos jornalistas logo depois de vencer o seu combate decisivo: “Lutei com
tudo o que tinha, mas acreditei que, se estava aqui, era para fazer história
pelo meu país. Deus sabe tudo. Quando queremos, é na hora que nós queremos, é
no dia que nós queremos”. Mais: “Digo isto a todas as crianças que me estão a
ver: vale a pena lutarmos pelos nossos sonhos”.
O livro fala muito de judo mas
fala também muito da menina que andava sozinha nos transportes entre a escola e
o salão paroquial onde começou a treinar porque os pais – ele pintor de
automóveis, ela cozinheira – não podiam levá-la de um lado para o outro, como
fazem os pais da classe média; como fala igualmente da rapariga que não
desistiu de estudar mesmo quando lhe complicaram a vida na universidade pública
onde andava; ou da irmã com quem um dia, no regresso de uma prova, dividiu num
aeroporto “um Toblerone daqueles pequenos” porque era só para
isso que dava o euro que tinham no bolso, vendo os colegas da selecção “ir
comer a algum lado”; e, claro, revela-nos a atleta permanentemente obcecada com
ser a melhor e tudo o que pode apaixonar no judo. Para além disso fala muito, e
muitas vezes, de uma ideia que Tema Monteira está sempre a repetir (como
na entrevista que deu à SIC): a vida não é determinada pelo
sítio de onde viemos.
O seu caso e o seu exemplo não
são únicos. A medalha de ouro da categoria -57 kg em que ela foi bronze, a
brasileira Rafaela Silva, nasceu num bairro ainda mais difícil – a favela
Cidade de Deus, imortalizado no filme de
Fernando Meirelles – e teve palavras não muito diferentes das de Telma no final
da sua prova. Ela, que para mais ainda teve de enfrentar o racismo, foi muito clara: “Mostrei que uma pessoa saída de favela pode tornar-se campeã.
A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, que batalhem. Assim,
podem alcançá-lo”.
Mas voltemos a Telma, e à sua
“garra”, que disse ser a dos portugueses. Ela que também achou que foi o
“sangue lusitano” que a alimentou até à vitória. Será mesmo assim? Será mesmo a
“garra” o que define os portugueses?
Confesso que a mesma questão
se me colocara um mês antes, quando ouvi o melhor jogador da selecção na final de Paris, Pepe,
dizer que a vitória que estávamos todos a celebrar fora “uma vitória de pura
humildade, pois representamos o povo português, que é isto: humildade, trabalho
e superação”. Já então a mesma dúvida: será mesmo?
Histórias de superação, como
as de Telma, ou de Pepe (que veio também ele de um bairro social da cidade brasileira
de Maceió), ou de Ronaldo, ou de Eusébio, ou de tantos outros, até podemos
dizer que, no desporto, são bastante comuns. São sempre histórias de muito
trabalho, muita determinação e muito esforço, pois só assim se obtêm resultados
(nunca me hei-de esquecer de ouvir o saudoso Moniz Pereira comentar que
começávamos por conseguir bons resultados nas provas de fundo, pois aí ninguém
duvidava que se tinha de treinar muito, mas do que nas disciplinas mais
técnicas do atletismo nesse tempo se confiava demasiado no talento e “se
trabalhava pouco”, e por isso os resultados não apareciam).
Mas passar destas histórias
para o “povo português” fez-me pensar. Merece o povo a mesma honra e distinção?
O nosso Presidente da República terá mesmo razão quando diz, como disse no último 10 de Junho, que “foi o povo, a arraia-miúda,
quem nos momentos de crise, soube compreender os sacrifícios e privações em
favor de um futuro mais digno e mais justo”? Mais: “O povo, sempre o povo, a
lutar por Portugal. Mesmo quando algumas elites – ou melhor, as que como tal se
julgavam – nos falharam, em troca de prebendas vantajosas, de títulos pomposos,
meros ouropéis luzidios, de autocontemplações deslumbradas ou simplesmente
tiveram medo de ver a realidade e de decidir com visão e sem preconceitos”.
Creio que Marcelo tem razão
quanto às elites: elas têm-nos falhado quase sempre. Ainda agora, durante o
doloroso processo de ajustamento, foram as elites as que mais se queixaram, bem
mais do que um povo que, apesar de tudo, cerrou os dentes e, em tantas e tantas
situações, acabou a “dar a volta por cima”. O problema, porém, é mais fundo e
mais complexo, pois as elites corrompem, os maus exemplos desanimam (sobretudo
quando vêm de cima), e os choradinhos são contagiosos. A humildade de que
falava o Pepe – e que a selecção tão bem encarnou naquele jogo inesquecível –
não escasseia apenas nos salões mais refinados. Tal como a capacidade de
superação está longe de ser a qualidade mais apreciada num país que parece mais
obcecado com a igualdade na mediocridade ou no assim-assim.
Nestas alturas lembro-me
sempre de Alexandre O’Neil que, num maravilhoso pequeno texto introdutório a um
livro de 1983, de autores americanos, sobre o nosso país – Portugal –, nota que, entre os portugueses,
uma das frases mais vezes repetida é “a culpa não foi minha”. Se pensarmos bem,
nunca é. Ora são as circunstâncias, a falta de sorte, o mau tempo, o bom tempo,
o chefe, os colegas, o árbitro, quase sempre o Governo, mais recentemente os
mercados ou a União Europeia. Um português que se preze, nota o poeta, nunca é
responsável pelo que corre mal ou apenas menos bem. Talvez por isso mesmo
O’Neill tivesse a relação complicada que tinha com o seu país, que tão bem
expressou quando escreveu “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe
até ao osso, fome sem entretém/ (…) feira cabisbaixa / meu remorso / meu
remorso de todos nós…”
Pois é. Tendo a crer que, três
décadas passadas, não mudámos muito. Telma, e regresso à sua autobiografia,
escreve que “atribuir a culpa do nosso insucesso a outros guia-nos ao próximo
fracasso”. Se ela o tivesse feito, há muito que teria desistido, pois não pode
vencer sempre e cometeu muitos erros. Mas sabemos que não desistiu, e estas
palavras valem tanto mais quanto é verdade que quando acabava de escrever o seu
livro estava também a recuperar de mais uma operação ao joelho e o que tinha
por mais incerto era conseguir regressar ao topo a tempo dos Jogos Olímpicos.
Conseguiu, para bem dela e de nós todos.
Mas nós todos é que não somos
assim. Passamos mesmo a vida a fazer o contrário do que ela aconselha. A crise
do país não foi culpa do nosso governo de então, foi da crise internacional –
disse-se isso na altura e continua-se a repetir hoje. A crise do endividamento
privado não resultou de decisões de quem quis comprar aquilo para que não tinha
dinheiro, mas apenas produto dos maliciosos bancos, que andaram a atazanar as
pessoas.
O crescimento que nos
prometeram não regressou, mas já estamos a ouvir as desculpas: a culpa é do
governo anterior, pois o abrandamento vinha detrás; ou então a culpa é de
Bruxelas, que obrigou a mudar o orçamento; ou ainda a culpa é dos juros baixos
(como podia ser dos juros altos) ou do petróleo barato (como podia ser do
petróleo caro).
A nossa floresta voltou a
arder? A culpa é
de quem não limpa as matas, como antes foi dos madeireiros, ou dos
reaccionários, ou das celuloses, ou da falta de meios. Nunca é de quem podia
ter mudado as políticas há dez anos e não o fez.
Temos sempre um motivo para
choramingar. Há mais turistas e centenas de obras de reabilitação nas cidades
históricas? Ai meu deus que os alugueres estão a ficar caros. Há empresas que
inovam, da Uber aos rapazes dos tuk-tuk? Aqui del-rei que o negócio dos
taxistas está pelas ruas da amargura. Os exames nos vários graus de ensino
revelam debilidades que não gostamos de ver? Acabe-se com os exames, não fiquem
as criancinhas traumatizadas.
Podia multiplicar os exemplos,
mas acho que Alexandre O’Neill não se sentiria mais confortável no Portugal de
2016 do que se sentia no Portugal de 1983. A verdade, a dolorosa verdade, é que
a cultura dominante neste país, o discurso que está sempre a encher as
televisões e a tomar conta das ruas nas manifestações, é o da eterna
choraminguice. Não é o discurso da Telma nem a atitude em campo do Pepe. É pena
mas é assim.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
15-8-2016
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