José Manuel Fernandes
É fácil ser Catarina Martins, e não é por
causa dos arrependimentos. É fácil porque não é preciso ter um discurso
coerente, apenas seguir os ventos que sopram e repetir os lugares comuns mais
na moda.
As chamadas “entrevistas de
vida” são, por regra, entrevistas “fofinhas”. Faz parte: mais do que confrontar
os protagonistas com as suas posições, procura-se que eles se revelem, “mostrando-se”
como raramente fazem publicamente. Têm por isso uma desvantagem que é, ao mesmo
tempo, uma vantagem: ao não contraditar, ou contraditar muito levemente, os
entrevistados, permitem muitas vezes que eles se apresentem mais descontraídos,
acabando por dizer o que não diriam se estivessem à defesa, como sucede noutro
tipo de entrevistas.
Creio que, numa entrevista
mais aguerrida, com perguntas mais desafiantes, Catarina Martins não teria dito
o que disse este domingo ao Público: “Todos os dias me arrependo da geringonça”. Com franqueza é
uma confissão que pouco adianta, pois o essencial não desaparece, e esse
essencial também é admitido na mesma entrevista, quando a líder do Bloco de
Esquerda não se limita a repetir a lenga-lenga sobre “travar o empobrecimento
do país” como cimento da dita geringonça, mas lhe acrescenta o “afastar a
direita do governo”. Mantendo-se válido este segundo objectivo, pouco custará
viver com os revezes evidentes na outra frente, pois a economia não tem querido
nada com a geringonça, como os números têm atestado de forma quase cruel.
Mas adiante, que o meu ponto
principal nem sequer é este. É antes o absoluto vazio de pensamento político
que essa mesma entrevista revela. Catarina Martins caiu no goto de muitos
eleitores, até eleitores instruídos, mas espremendo o que diz apenas se
encontra uma sucessão de lugares comuns cujo significado é difícil de discernir.
Tomemos, por exemplo, a
seguinte passagem dessa entrevista:
“Não há ninguém que não assuma
que é preciso reestruturar a dívida. É um processo que devia ser aberto e
Portugal não devia ficar sempre à espera. Ficamos à espera de quê? Que a
Goldman Sachs mande um bocadinho mais? Não vamos nunca reestruturar a dívida?”
A primeira perplexidade é
fácil de detectar: o que está a Goldman Sachs a fazer neste molho de frases?
Ela manda “um bocadinho mais” em quê? Na nossa dívida? Nas opções da senhora
Merkel? Na Comissão Europeia? Na verdade, em parte nenhuma, a não ser na cabeça
dos maluquinhos das teorias da conspiração. Contudo fica sempre bem deixar cair
uma frase sobre a Goldman Sachs, pois tem o mesmo efeito que invocar Satanás
tinha na Idade Média – e por isso mesmo tem o mesmo significado, ou seja,
nenhum.
E, depois, o que é
reestruturar a dívida? Catarina nunca explica, pois se o fizesse teria de se
comprometer com soluções que, como todas as soluções, teriam consequências e
custos. Ora, na linguagem do Bloco e da Catarina, nunca há custos, há só
ganhos.
E fantasmas. Senão vejamos
esta outra passagem da mesma entrevista:
“O maior risco é perdermos
todo o controlo sobre o sistema financeiro, porque aí a democracia passa a ser
uma fantochada, deixamos de ter capacidade de decidir sobre o que quer que
seja.”
Mais uma vez não consigo
compreender onde quer chegar a líder do Bloco chegar. Primeiro: o que significa
controlar o sistema financeiro? É ter bancos públicos? É manter a banca em mãos
portuguesas? É ter os bancos sob o controlo do Banco de Portugal e não do Banco
Central Europeu? É manter a Caixa-Geral de Depósitos? Não se percebe – só se
percebe que Catarina surfa a onda que está a dar, e o que está a dar é dizer
mal dos banqueiros, do BCE e das regras europeias.
Depois, onde é que o controlo
do sistema financeiro casa com uma democracia que não seja uma fantochada? Se
Catarina dissesse que era preciso recuperar o controlo da política monetária
para voltarmos a ter poder de decisão, e mais soberania, eu compreenderia. Mas
não é isso que ela diz, pelo que fico na dúvida. Sugere Catarina que, para
haver democracia, a nossa “capacidade de decidir” implicará dar ordens aos
bancos? E que tipo de ordens?
Bem sei que os nossos
banqueiros deram todos os motivos aos políticos para estes se armarem em
donzelas, mas a verdade é que os banqueiros públicos, sobretudo quando
receberam ordens de governos, conseguiram fazer tão mal ou mesmo pior que
alguns dos privados, como agora se está a ver com a Caixa Geral de Depósitos, o
banco onde a recapitalização, tudo somado, acabará por ser a que mais dinheiro
custará aos portugueses.
Numa outra passagem da mesma
entrevista Catarina vai mesmo mais longe:
“A ideia de dependência do
nosso Estado não tem a ver com a capacidade produtiva do país, nem com os
salários das pessoas, nem o peso do Estado Social, mas só com o sistema
financeiro.”
Ou seja: nós somos ricos, pois
não há nenhum problema com a capacidade produtiva do país; nós também somos
competitivos, pois não há nenhum problema com a nossa competitividade; e não
tivemos défices crónicos, e elevados, e permanentes, nos 40 anos de democracia,
pois também não há nenhum problema com os custos crescentes do Estado Social.
Se temos problemas, estão no sistema financeiro e só no sistema financeiro. É o
que se chama tomar a parte pelo todo para evitar olhar para as outras
debilidades de Portugal. Enquanto houver um bode expiatório, sobretudo enquanto
houver alguém a quem as Catarinas desta terra possam apontar o dedo e atribuir
culpas, tudo o resto estará bem.
Mas o discurso de Catarina não
necessita de ser sólido ou coerente para passar levemente, muito levemente,
esvoaçando como a brisa da tarde, sempre sem ser seriamente contraditado. Há
uma outra passagem da entrevista que é disso um bom exemplo:
“O problema é a política do
ódio. Está a crescer. É o mais perigoso de tudo. A política do ódio acontece
quando a NATO bombardeia, quando Donald Trump faz uma campanha a hostilizar uma
parte do mundo, quando a União Europeia trata parte do seu povo como se
estivesse sob suspeita permanente”.
Repare-se bem na quantidade de
fenómenos de características completamente diferentes que Catarina mete no
mesmo saco. A campanha de Trump pode ser definida como “política do ódio”?
Aceito, e muitos também aceitarão sem contestação. Mas o que é que isso tem a
ver com “os bombardeamentos da NATO”? Quais bombardeamentos? Os da Síria? Os da
Líbia? Estará Catarina ao lado de Assad, ou do Estado Islâmico, ou de Kadhafi?
Ou estará apenas a repetir o velho lugar-comum da esquerda-radical anti-NATO e
anti-atlantista? É que, nessa frente, nesse combate, terá a seu lado… Donald
Trump. Ou com Marine Le Pen. E, já agora, qual é a parte do povo da União
Europeia que esta trata como se estivesse sobre suspeita? Os portugueses? Os
gregos? Ou os britânicos, contra os quais estão hoje dirigidas todas as
baterias depois de estes terem votado pelo Brexit?
Nestes molhos de palavras, que
repete sempre de forma torrencial, não parece ser necessário encontrar um
sentido – só importa cavalgar o preconceito do momento. Os sound-bytes são aqui
bem mais eficazes do que os sound-bytes de outros especialistas no género, pois
estes limitam-se a seguir o espírito do tempo.
De novo um bom exemplo disso é
o slogan que o Bloco afixou por todo o país, em enormes outdoors:
“Não às sanções, não à
chantagem, Portugal é uma democracia”.
Esta frase é uma excelente
expressão do populismo reinante. O ponto não é saber se concordamos ou não com
as sanções ou o que definimos como chantagem – o ponto é saber o que
caracteriza uma democracia.
Na cabeça dos populistas,
democracia é a vontade a maioria. Isso basta-lhes. Sobretudo se a única maioria
que importa for a sua própria maioria (se acontecer o contrário já é mais
duvidoso que seja uma democracia, pois nessa altura estarão pelas ruas de todo
o país a pintar paredes pedindo a dissolução da maioria que lhes for
desfavorável).
Acontece que a democracia é
sobretudo sobre regras do jogo, sobre governo limitado, sobre equilíbrio de
poderes e sobre respeito pelas minorias. Isto porque as maiorias vão e vêm, e
essa é a riqueza do sistema, o único que assegura mudanças pacíficas de
governo. No caso concreto da nossa relação com a Europa, democracia representa
sobretudo duas coisas: primeiro, respeitar as regras europeias que
subscrevemos; depois, aceitar que, sendo esta uma Europa de Estados e nações,
há nela outras maiorias e outras vontades democraticamente expressas, que
merecem tanto respeito como a nossa maioria e a nossa vontade.
O Bloco não gosta das
limitações à soberania que algumas dessas regras implicam? Eu também não gosto.
Mas aceitá-las foi a escolha
maioritária – esmagadoramente maioritária – dos representantes eleitos dos
portugueses. Foram eles que aceitaram estas regras acreditando nas vantagens
que elas trariam. Podemos sempre arranjar forma de as reverter, como os
britânicos arranjaram. Mas então teremos também de pesar as consequências. Quer
Catarina fazê-lo? Claro que não, pois isso seria bem mais arriscado e
impopular.
Por outro lado, a maior
limitação à nossa soberania nem sequer são as regras europeias – é a nossa
dívida.
Pior: é o nosso défice, pois é
ele que continua a fazer crescer a dívida e a obrigar-nos a continuar a pedir
dinheiro emprestado. E Catarina, que acha que tudo se resolveria reestruturando
a dívida, acha também que a seguir poderíamos continuar a ter défices públicos
e a encontrar quem os financiasse depois de ter perdido o dinheiro que antes
nos emprestara.
Neste seu país de conto de
fadas não custa a Catarina despejar frases sonantes mas sem grande sentido –
tudo porque no país real que somos ninguém lhe faz a pergunta que era
importante fazer: mas quem é que cria a riqueza para pagar mais Estado e mais
consumo? Nós ou os alemães? E quererão eles pagar – democraticamente – os
nossos défices?
Por isso ainda bem que há
entrevistas “fofinhas” para percebermos a insustentável leveza de alguns dos
nossos heróis políticos.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
25-8-2016
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