Maria João Avillez
Vertigem define bem a campanha presidencial
francesa, a que assisti por estes dias em Paris, confrontando-me com os seus
inimagináveis episódios. Mesmo sendo a política mais imprevisível das artes.
1. Vertigem define bem a campanha presidencial francesa, a que pude
assistir por estes dias em Paris, confrontando-me incredulamente com os seus
inimagináveis episódios. Sim, mesmo tendo em conta que estamos a falar de
política, a mais imprevisível das artes.
Vale a pena recapitular: a
primeira surpresa veio do próprio Presidente da República com o anúncio, feito
há meses, de que não se recandidataria. Temendo perder as primárias do seu
partido (vexame indisfarçável), mil vezes mais que a própria eleição, Hollande
recusava a prova e não bisaria a corrida ao Eliseu. Ponto final no facto
inédito. Os socialistas entre a orfandade e a exultação do estorvo arredado,
dividiram-se ainda mais, a corrida acelerou. A renúncia de Hollande não fez,
porém, senão oficializar uma divisão que corroía já espíritos, vontades, barões
e estruturas. Tão forte e persistente que hoje é uma (irreversível?) fratura e
não já um mero desacordo entre correntes partidárias. Exit PSF como sempre o
conhecemos.
A seguir, nova ribombante
surpresa, agora nas primárias da direita: como um coelho que irrompe sem se
perceber como de uma cartola, François Fillon (já lá vou), enxotou os seus
rivais, derrotando um (Juppé, suposto favorito) e humilhando o outro (Sarkozy,
que acreditava num regresso). Subestimado por todos e aparentemente confinado a
um modesto terceiro lugar, Fillon originou um rasto de espanto mesmo nas suas
hostes: como é que aquele homem circunspecto e baço em quem não “se” reparava
obtivera mais de 70% dos votos vencendo estrondosamente um “preferido” e um
enérgico sempre em pé?
Episódio três: na corrida
presidencial socialista ficou definitivamente claro que todo o seu grande sector
“governamental”, fora banido e excluído. Os votantes socialistas viraram as
costas a Manuel Valls, ex-Primeiro-Ministro de Hollande, reformista e social-democrata e preferiram-lhe o jovem radical Benoit Hamon, também ex-ministro que
após demitir-se do Executivo, se vestiu de detrator feroz da governação. A
surpresa foi, porém, dupla: não só Valls viria a perder a corrida como tudo
“apontava” para que fosse Arnaud de Montebourg a ganhar no pelotão radical do
PSF. Afinal (ah os “afinal” em política…) foi Hamon e não Montebourg quem
vestiu a camisola socialista. É certo que a tarefa de Valls — distanciar-se do
infelicíssimo mandato de Hollande do qual fora chefe de governo — era ciclópica
e igualmente certo que o quinquénio do atual Presidente nem se explica nem se
recomenda. Mas – não nos iludamos — o que está de novo em causa diante dos
nossos atónitos olhos é o fim dos modelos ideológicos com que sempre lidámos. E
a agonia das escolhas governamentais dentro das fronteiras políticas que sempre
conhecemos. Sancionadas uma vez mais como agora ocorreu no PS francês, com a
(irreversível?) rejeição do modelo social-democrata, do liberalismo económico,
da Europa, do euro, para resumir depressa algumas das coisas essenciais onde
têm assentado os regimes, as políticas e as governações europeias nas últimas
décadas.
2. Enquanto isto mas alheio a isto, há (mas é melhor começar a
dizer que há “sobretudo”) um jovem que há alguns meses resolveu candidatar-se à
chefia do Estado. Chama-se Emmanuel Macron, dizem-no um sobredotado (será?).
Estudou Economia e Finanças em universidades anglo-saxónicas, veio da Banca, do
Eliseu onde foi conselheiro de Hollande e do Governo por onde passou, titulando
a pasta da Economia e assinando a Lei Macron que visava liberalizar o Trabalho
e ficou a meio. Depois optou por largar a governação e instalou-se por conta
própria no sonho presidencial. Diz “não ser de esquerda, nem de direita” e por
isso cultiva a ambiguidade (sempre um mau sinal) como um jardineiro inglês as
suas rosas. Corre depressa, dispensando partidos, estruturas partidárias, nomes
sonantes. Fala com o povo “diretamente”. Aparentemente tem tudo a seu favor: a
ambição, o brilho intelectual, a inteligência, a sedução, a frescura. Com uma
energia imparável conta com três mil pessoas a trabalhar na sua campanha, em
grupos apartidários supostamente bem oleados. Para muitos significará “a”
mudança, outro temerão a inexperiência e a falta de maturidade política para
passar os faustosos portões do Palácio do Eliseu. Seja como for, um dia o
“brilhante” Macron terá de se definir e dizer ao que vem. E aí, politicamente
fiará (muito) mais fino.
3. E Le Pen, Marine? Lá está, qual loba, à boca das urnas e bem
colocada para engolir muitos votos. Está há muito tempo na fila de espera é
certo, mas o ponto é que em vez de estar naquela espécie de arrecadação onde a
cada eleição se juntam alguns inócuos candidatos de várias origens, a terrível
e temível Marine está ao gosto de um cada vez maior eleitorado. Os tempos estão
para gente como ela.
4. Estava-se face a este tableau
de chasse singular (Hollande desistente; um PSF exclusivamente representado
pela sua extrema-esquerda; uma Direita nas inesperadas mãos de François Fillon,
a Frente Nacional quase nos píncaros, um voraz Macron a espreitar por cima de
tudo isto) quando a quinta surpresa fez uma “fracassante” entrada em cena: a
acusação sobre a mulher de François Fillon de auferir avultadas remunerações
por empregos ditos “fictícios”. No caso — ainda não integralmente apurado –
trata-se de uma assessoria parlamentar ao marido e da colaboração numa revista
cujo proprietário, amigo de casal Fillon teria, nessa “qualidade”, remunerado
Penelope Fillon por colaborações redatoriais alegadamente esparsas ou quase
inexistentes. Isto que é mau e em breve será devastador, foi, porém, de
imediato precedido de um violentíssimo massacre mediático que logo tornou o ar
político irrespirável. Nunca houve tempo — nem critério — para que alguém (nos)
contasse bem a história porque a presunção de inocência num ápice se
transformou na certeza de culpa. A mídia certificava a “culpa”: na praça
pública e substituindo-se a juízes e tribunais. Suspeito aliás que o modelo tenha
vindo para ficar, mas nunca vejo ninguém especialmente incomodado com a série
de massacres mediáticos a que já assistimos, hoje ou no passado, cá dentro ou
lá fora. Com uma inabilidade na qual na véspera ninguém apostaria, Fillon
defendeu-se mal, contra-atacou pior, o desnorteio instalou-se, o massacre tinha
por onde se alimentar.
Se há muito quem sublinhe a
espantosa conveniência política da denúncia e a oportunidade temporal da
“descoberta” sobre a honra soi-disant
perdida de Penelope, o ponto não será tanto a ilegalidade (ou não) destas
acusações, mas os estragos na maior vantagem eleitoral do candidato da direita,
quase unanimemente visto até há pouco como o vencedor antecipado desta eleição:
justamente a sua imagem pública. Cuja arquitetura, desenhando-o como um cidadão
sério, homem probo, político rigoroso, católico, bom chefe de (numerosa)
família, abriu agora fissuras que parecem irreparáveis. Vi e ouvi François
Fillon por estes dias reafirmar a sua candidatura, evocar uma “muito
profissional campanha de calúnias” — e quem duvidará que se está perante uma
“encomenda? — mas o facto é que a mistura de ingredientes desta surpreendente
história é demasiado explosiva. E deixa no ar um cheiro a pólvora. Logo a
seguir já havia planos B em marcha, ratos a saírem do navio, nomes para
substitutos (“era o que faltava que Fillon nos fizesse perder uma eleição ganha
à partida”), veleidades e intriga. Apesar dos fiéis teimosos e da (pretensa?)
serenidade do candidato, ou muito me engano ou daqui a pouco o nome de Fillon
pronunciar-se-á no passado.
5. E agora? Agora, enquanto parte da direita anda com uma lanterna
à procura de “alguém” (Juppé reafirma recusar ser “um plano B”, mas em política
nunca se sabe e também nunca se sabe o que vai dentro da cabeça de Sarkozy),
parte da esquerda moderada do PS já se “inscreveu “ em Macron. Emmanuel soma e
segue, como grande beneficiário das infelicidades da direita e do péssimo
estado de saúde no PS. Ignora-se que fará ou dirá François Hollande, mas se
nada disser de claro ou firme a favor do candidato oficial do seu próprio
partido, estará obviamente a preferir Macron a Benoit Hamon. O certo é que a
avenida (“un grand boulevard”, como aqui se escreve) que subitamente se
escancarou diante de Emmanuel Macron parece isso mesmo: a estrada da
felicidade, grande e aberta. Mas nem a (sua) ambiguidade pode durar sempre, nem
se consegue gerir toda a vida essa coisa de “não ser nem de esquerda, nem de
direita”. Será, porém — oh ironia — quando Macron se definir e abrir
politicamente a boca a sério que as intenções de voto começarão a minguar. À
esquerda e à direita, claro está, porque justamente não se agrada às duas ao
mesmo tempo.
E finalmente também julgo que
Marine Le Pen ganhará com este deplorável estado de coisas. Ou haverá algo mais
gravemente deplorável do que o PS a agonizar; a direita sem chão nem bússola;
um candidato cujo brilho provém essencialmente da sua oportuna ambiguidade; e
os populismos a crescer inquietantemente? Adubados por utopias (ouça-se Benoit
Hamon), sem alicerces, certezas sem provas dadas, promessas impossíveis,
discursos inconsequentes (volte-se a ouvir Hamon), numa maré tão acintosamente
populista quanto arrogante. Por vezes, quase violenta.
E não tão longe assim — basta
só parar para pensar um pouco nalgumas semelhanças – de alguns mandamentos da
Frente Nacional. Assunto a voltar um dia destes, porque há que obrigatoriamente
voltar a ele.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 3-2-2017
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