Aparecido Raimundo de Souza
NÃO SEI EXPLICAR OS MOTIVOS E
AS CIRCUNSTÂNCIAS. De uns dias para cá,
venho sentindo, na pele, estar quase a transpor os umbrais do desfecho dos meus
dias e passar desta à categoria de cadáver. Também percebo, amiúde, que a vida
me foge por entre os dedos, como o calor do sol nos cabelos, tudo num processo
lento, e pejorativo. Entrevejo, igualmente, os olhos ofuscados por manchas
brancas e opacas. Quase não distingo as pessoas dos objetos. Pior, os objetos
das pessoas. Ao meu redor, um vento frio canta coisas do além. Ouço o sussurro
da morte em repetitivo cantochão. Sua aproximação, ainda que de forma amena e
afável, me causa uma espécie de calafrio mórbido progredindo corpo inteiro.
Todavia, essa sensação, não chega a ser totalmente de sobressalto ou de
angustia. Diria, para ser mais preciso de satisfação perene.
Fico imaginado, em ótica
inversa, como a vida é engraçada e nos prega peças a todo instante. Ontem
mesmo, ontem mesmo me olhei no espelho. Quero dizer, espiei para o que restou
de tudo o que um dia pensei ter sido. Que decepção!... daquele homem cheio de
vida e esperança, empertigado, vaidoso, emproado e cheio de viço, fiquei
reduzido a um punhado de rugas. Refolhos feios, inexpressivos, empanturrado de
contrariedades e dissabores. Retrato à flor da pele, sem retoques, sem
maquiagens, sem as interferências de um fotochopp.
Estampas estorvadas em preto e branco da caminhada derradeira, que me resta
para viver. Um carro velho, caindo aos pedaços, em comparação comigo, parecerá
tremendamente mais significativo e valioso que aquela imagem desfigurada,
fastiosa, sisuda e feia diante do espelho mudo e abetumado. Mas o que fazer? O
que fazer? C’est la vie. É a vida!
Pois é! Tenho que partir, bem
sei. Desabrochar para campos verdejantes e dar lugar a outros jovens que estão
imediatamente atrás. Por sua vez, os médicos precisam de meu corpo para
aprender a curar uma pá de gente que abunda, a toda hora, de lugares os mais
apartados, trazendo mazelas e enfermidades diferentes e complicadas. É a eterna lei da natureza se renovando. E
lei, é lei. “Dura lex sed lex”. E fim
de papo... sem contar que o tempo é implacável e austero...
Por assim, não serei eu,
simples mortal, que pretenderá transformar o que o Grande Homem do universo
deixou escrito no livro do destino. Só me resta, pois, aceitar a realidade, nua
e crua e esperar. Esperar, esperar, pacientemente vencido, conformado e
deformado pelo calejar dos anos.
Esperar, bem sei, é preciso, pela hora limite, pelo instante concluso de
atravessar o grande braço deste imenso aguaçal brumoso, que me levará ao outro
lado.
Perguntas com relação a isto
afloram num turbilhão desordenado. Como será o outro lado? O que haverá à minha
espera naquela banda sombria da margem desconhecida? Quem estará por lá, me
recepcionando? Para onde irei, afinal, quando o sopro do gozo voluptuoso de
respirar me deixar nos braços gélidos da eternidade? Diz um axioma antigo, que
“na morte, todas as perguntas serão respondidas”. Será? Pelo sim, pelo não, o
que me causa certo pavor e sobressalto - gostaria de saber certas coisas agora,
enquanto estou aqui -, à espera, como uma locomotiva obsoleta num desvio da
linha. Descobrir segredos insondáveis, imperscrutáveis e esfíngicos, enquanto
me flagro a esquadrinhar o barqueiro que virá me apanhar para a travessia sem
regresso, a ida sem volta, a partida sem adeus. O que será de mim? Escabreado,
inseguro, me questiono bolado e incrédulo, quando afinal, estiver a bordo do
escaler, ladeado pela intrigante Dama da foice? O que será de mim?
Justamente agora que eu tinha
comigo a força do touro, a astúcia da raposa, a coragem do jaguar e a sabedoria
dos anciões... coincidentemente agora, o que me acontece? Chega a hora da
partida. Num piscar de milésimos de segundos, me pego chorando. Chorando
copiosamente, profusamente, inesgotavelmente. A tez disforme, desproporcionada
por pelancas, acabada, encarquilhada, banhada em pranto. As lágrimas rolam como
pingos derramados de uma taça cheia demais. Por instantes, recordo meu passado.
Desde que nasci, vivi e cresci me estacionei entre a dor, o ódio e, de
contrapeso, as mais diversas formas de rancores e sofrimentos. Ninguém, nessa
longa jornada até aqui, me estendeu uma mão amiga. Jamais recebi um carinho, um
gesto de afeto, ou de afago.
Somente me deparei com punhos
cerrados e ameaçadores. Caras fechadas, semblantes retraídos, portas e janelas
fechadas. A tal da felicidade, se de fato existe, nunca bateu de frente comigo.
Tampouco me acenou com gestos efusivos. Talvez, seja por essa razão, que, de
igual forma, em tempo algum, tenha amado verdadeiramente alguém, e, a todos que
me cercaram, tratei com desamor e falta de afeição. A falta de amor, a gente
aprende na marra, cria um despenhadeiro intransponível entre as criaturas, ao
passo que a renúncia rebenta com o passadiço, não permitindo que elas se
embaralhem num amplexo fecundo e revigorante.
Quem sabe seja por isso (autor
de tantas disfunções negativas, por onde andei, por onde pisei), só tenha
conseguido semear e receber, em quantidades idênticas, desavenças e
inquietações, desgraças e amarguras, tristezas e martírios. Talvez, seja por
isso, ironicamente, em nenhum momento e lugar, tenha sido verdadeiramente
próspero e afortunado, ditoso e opulento. Estou, e sinto isso aqui dentro do
peito. Pressagio, algumas horas adiante, talvez minutos, passar à categoria de
defunto. Falecido, apagado, examine, inerte, olvidado. Não há o que esconder
resguardar, encobrir ou tapar. Ponto pacífico, quanto à extinção. Ela é certa
como dois e dois são quatro.
Contudo, o que mais me
entristece, me amofina me angustia o, que me tira as poucas horas de calmaria e
sossego, é saber que ninguém se importará comigo. Ninguém! Meu passamento não
trará caridade ou condolência à misericórdia de nenhum ser humano. Não deixo
parentes próximos, ou amigos, nem esposa ou filhos. Absolutamente nada de útil
ou aproveitável que possa o agora e, a “depois”, o amanhã, se pegar e dar
continuidade ao que um dia fui (se é que fui), ou o que, aqui nesta terra,
algum momento representei.
Apesar das flagelações e dos
pesares, nessa dolência minguada, me resta uma certeza sólida, encorpada,
consolidada, maciça. Uma assertiva cruel, amarga, bárbara, contudo, firme,
convincente, certa e decisiva: olhando com estes olhos cansados de velhice,
para o céu bonito e garboso, esmerado e airoso, vejo astros, estrelas e
planetas que flutuam sobre mim. Claro que as demais pessoas também vêm, mas,
com certeza, não desfrutam de todas essas pequenas felicidades como eu
experimento e saboreio, ou como vislumbro, dentro do meu transe amadurecido. Na
verdade, esses astros, essas estrelas e esses planetas são como pedras
dispostas que um anjo amigo, descido lá do infinito, acondicionou em meio do
rio enorme, para não ficar muito triste, nem melancólica, a minha navegação.
Essa navegação seja em que circunstância for (não importa o tempo passado ou
vivido) será idêntica a de um marinheiro em sua viagem inaugural.
Alguma coisa me diz, me sopra
ao pé do ouvido, antes de chegar do outro lado, antes mesmo de pisar à praia
ignorada, minha alma se desprenderá do corpo físico e irá à frente, pulando
daqui e dali, para lá e acolá, por sobre esses minúsculos rochedos, deixados
pelo querubim, como se, numa série de saltos cadenciados me preparasse o novo
lugar onde deverei aportar.
E confesso, me vejo assim:
horrorizado, receoso, assombrado, alarmado, confundido, à sombra do meu
fantasma, e, na cola dele, grudado em seu pelo, saltando de um obstáculo a
outro, entremeio do rio caudaloso, e depois, já do outro lado, calmo e débil,
definhado e enfraquecido, sossegado e saciado, abonançado e feliz, sobretudo
feliz, viajando pelo espaço agreste deste lindo céu imensurável, colossal e sem
medida, em rota de colisão aos abraços lisonjeiros e cordiais benévolos e
acolhedores do DEUS PAI, O TODO PODEROSO.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Ribeirão Preto, interior de São Paulo, 8-8-2017
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