terça-feira, 8 de maio de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Dança lisérgica

Aparecido Raimundo de Souza

"Crime no rio. Policial nada, nada e morre abraçado ao próprio cadáver de seu corpo sem vida".
Tompson de Panasco.

O DELEGADO BEZERRA, QUE VIERA da capital, para investigar, no pacato vilarejo de São Timóteo Guerreiro, perdido em meio à densa floresta, às margens do Rio Pacatatu da Cutia Não, viajou quase trezentos quilômetros por estradas asfaltadas e depois, mais uns noventa, por trilhas de chão batido até alcançar seu objetivo principal. Finalmente, muitas horas sentado ao volante da viatura (parando apenas para as necessidades básicas e o esticar das pernas) topou com a localidade. São Timóteo Guerreiro. Parou o carro em frente ao que parecia ser uma vendinha, e olhou em volta. O fim de mundo tinha pouco mais de cinquenta construções espalhadas ao longo da via principal.

Ao comprido dessa alameda, havia uma pracinha entrelaçada a um jardim esmerado, com destaque para uma árvore centenária debruçada sobre um quase coreto destruído. Nele, cachorros famintos, dormiam à sombra do silêncio que reinava. Também se notava a presença de bancos de cimento espalhados e uma igrejinha contígua a uma edificação de dois andares pintada num amarelo esmaecido com os telhados caindo aos pedaços. Certamente ali morava o padre. O delegado pretendia não se demorar, visto que, numa primeira vasculhada, não vira restaurante, hotel, bar ou pensão, além daquele empório de duas portas com vassouras, rodos, ancinhos, enxadas, pás, picaretas e uma dezena de escadas de vários tamanhos, churrasqueiras, sacos de carvão, bacias, latas, redes, e, claro, uma infinidade de varas de pesca, encostadas as portas, certamente para comercialização.  Nesse local onde Judas perdera as botas, e possivelmente gastara as trinta moedas de prata, que recebera por entregar Jesus Cristo, um mistério desafiava o inconcebível. A estranha e misteriosa morte de um pescador que todos conheciam por Chico Beiçola. Chico Beiçola havia passado desta para melhor, e encontrado “caro data vermibus” por pescadores numa das margens do imenso rio que cortava a região. O homem todo de preto saltou sem pressa, ajeitou o revólver a cintura, o distintivo no peito e passou a mão numa pasta e entrou no estabelecimento. Deu com um gordo por trás de um balcão enorme, semelhantemente cheio de quinquilharias.

- Boa tarde, meu prezado.
- Boa tarde cavalheiro. Em que posso ajudar?
- Meu nome é Bezerra. Vim da capital para averiguar o ocorrido com um companheiro de vocês, o Chico Beiçola.
- Entendo. Foi realmente um amigo e grande a perda para nossa comunidade. Todos gostavam dele. Vivia sozinho, no final do asfalto. Não tinha inimigos. Tudo o que ganhava, vinha do suor da sua pesca. 
- O que o senhor sabe do passamento dele?
- O que todos aqui sabem.
- E o que todos por aqui sabem?
- Não muita coisa, senhor. Foi encontrado por pescadores. Todo mordido ou picado sei lá. Tem uma pessoa que poderá lhe dar maiores informações...

- Seria essa pessoa o seu Zé Bicão?
- Ele mesmo. A criatura certa. Pescavam juntos. Além de amigos há muitos anos. Quase irmãos.
- Pelo que me falaram na capital, antes de empreender esta viagem, todos aqui nas redondezas disseram que esse cidadão, o seu Zé Bicão, foi à única testemunha que presenciou os momentos finais do falecido antes que ele perdesse a vida no momento em que quase alcançava a linha da marina onde, aliás, fica sediado o barracão da colônia de pescadores. Estou certo?
- Certíssimo. O senhor tem toda razão. Zé Bicão poderá lhe esclarecer todos os detalhes.
- E onde fica esse barracão da sede da colônia?

O velhinho procurado trazia no rosto inteiro, uma enorme e espessa barba branca. Parecia meio seco, porém, na medida em que o delegado se aproximava, percebeu um sujeito musculoso e sólido. Fumava um cachimbo antigo, ao tempo em que espiava (as feições ainda crispadas pela dor) as águas barrentas do flúmen caudaloso que se perdia no sem fim do distanciado. O recém-chegado pigarreou para se fazer notar, e quando o outro o divisou, na ponte que levava até onde estava, indagou:
- Bom dia, meu senhor. Meu nome é Bezerra. Delegado de polícia da capital. 
- Prazer. Eu sou o José Francisco. Conhecido por aqui como Zé Bicão.  Em que posso lhe ser útil?
- Gostaria que me contasse direitinho como tudo aconteceu com seu amigo, o Chico Beiçola. Pelo que apurei, até agora, o senhor foi o derradeiro a vê-lo antes do falecimento. Procede?

Empostando a voz, como se fosse importante o que diria, esclareceu:
- Procede sim. Se o senhor quiser realmente ouvir...
- Com certeza. Faça as honras de anfitrião do caso. Pode começar a hora que quiser. Fique à vontade...
O ancião deu uma tragada longa em seu cachimbo e encarou o policial que o contemplava encostado agora numa viga de madeira que acessava o carreiro onde pequenos barcos e caíques se achavam amarrados.
- Beiçola, seu moço, vinha vindo embora para casa. Estava bem ali, ó. Ta vendo aquela ilhazinha quase perto da margem?
- Ali? Perto daquelas pedras?
- Não, lá, depois dos manguezais.

- Tudo bem, continue...
- Ele viajava numa piroga.
O policial esboçou um sorriso jovial, intimidado pelo franzido de testa que lhe endereçou o veterano.
- Piroga?
- Canoa. Piroga, por aqui, é o mesmo que canoa.
- Entendi. Continue...
- Beiçola é um grande pescador.
- Era! O senhor quis dizer, era?
- Não, é. Mesmo depois de morto ele continuará sendo um pescador. Um grande e excelente pescador.

O policial sorriu de novo a esta observação infantil, percebendo, todavia, a humildade de seu interlocutor. O setentão se manteve firme. Exprimia uma audácia tranquila, despida de qualquer resquício de ironia. 
- Está bem. Vamos supor que seja assim. E daí?
- Beiçola segurava dois remos enormes. A embarcação dele era do tipo dessas atracadas aí atrás do senhor, está vendo? Notadamente a pintada de azul. A bichinha vinha cheia de peixes. Abarrotada. Então aconteceu...
 - O que aconteceu exatamente?
Sob as pálpebras congestionadas o prisco explicou:
- Elas, as abelhas chegaram em chusma... vieram dali...

Zé Bicão apontou para uma espécie de bosque onde crescia uma vegetação densa crestada pelo sol.
- Chegaram em vigoroso barulho...
- Enxame?
- Que seja!
- Mas eu soube, pelos vizinhos que foram à delegacia, que o Chico Beiçola morreu afogado. Afinal, foi afogado ou picado?
Nesse instante, a voz do arcaico se abrandou imperceptivelmente.
- Acho que foi, no meu entender, afopicado...
- Como? Afo... afo o quê? Quer, por favor, repetir?

- Afopicado, moço. Afogado com picado ou vice-versa.
- Seja mais claro, por obséquio.
- Veja bem, seu delegado -  disse num pensamento obsessivo. - Quando as abelhas estavam se aproximando, o barco dele, calejado de guerra, sentindo a presença fria da Senhora da Foice e temendo ser mordido...
- Picado?
- Com medo de ser picado, o barco, ladino, esperto, ligeiro, não esperou pelo pior. Se armou de coragem e pá, puf!
- Explique pá, puf.
- Saiu correndo...

O policial não pode deixar de dar uma estrondosa gargalhada e aproveitar para fazer uma piadinha.
- O barco saiu correndo! As carreiras. Correndo ou nadando?
- Escuta só, meu senhor. A coisa é séria. Não estou aqui pra brincadeiras. Pois bem! Acho que nem uma coisa nem outra. A embarcação, a meu ver, deixou o local em desabalada navegância, ou a toda velocidade, como se costuma dizer na linguagem nossa, própria dos pescadores. O senhor entende, não é?  Os barcos navegam. Resumindo: a piroga antes de “tirar o time”, pulou fora. Por algum motivo inexplicável, emborcou. Antes que o senhor me pergunte o que é emborcar... a droga virou de barriga para baixo. Depois que se livrou da carga, deu no pé. De vez. Se deixou ser levada pela correnteza...

- Entendo! Emborcou, entornou. E as abelhas?
- Como perderam de vista o barco, deram meia volta e caíram com tudo em cima do infeliz do meu amigo Chico. Que Deus o tenha!  Pobre Beiçola!
- Alto lá. Dentro da água?
- Sim. Dentro da água. Qual o espanto?
- Não sabia que abelhas nadavam.
- Abelhas não nadam, meu senhor. As que conhecemos. As que vemos todos os dias. As que fizeram uma morada logo ali perto da trilha. Essas, porém, que atacaram Chiquinho, eu classificaria de diferentes.
- Diferentes? Como diferentes?

- Diferentes das que estamos acostumados a ver todos os dias. Essas malditas, “daquela marca que acabaram” com a vida do meu amigo.  As pestilentas nadam borboleta, costas, peito e livre. Juro que vi com esses olhos que os vermes da terra ou os peixes aqui desse rio um dia se “banqueteará”.
- Daquela marca?
- Exato senhor. Daquela marca...
- Não seria daquela espécie?
- Que seja como o senhor falou. O fato é que elas voaram, mergulharam, nadaram cachorrinho. São feras, inteligentes, mais até que os pacatos e broncos aqui da vila. Desde molecotes trabalhamos nesse rio. Tem uma turminha dessas abelhas, só para o senhor entender, que pulam de cabeça, em busca do néctar, para produzir não o mel, mas um líquido aquoso e malcheiroso.

Mais e mais gargalhadas.
- O senhor está me dizendo que as abelhas picaram seu Francisco, perdão, seu Chico enquanto ele estava dentro da água?
- Perfeitamente.
- Mas...
- Até um bando de peixes, na hora da confusão, “saíram” lanhados...
- Se entendi direito, picados? Um cardume saiu picado?
- Mais ou menos isso. Sabia que encontrei um par deles com ferrões enormes “nos pescoço?”.
O policial estava às voltas de desistir daquela conversa fiada. Afinal, não chegaria a lugar algum dando atenção àquele infeliz, ouvindo a sua prosa de bocó. Perdera tempo, um tempo precioso, a seu ver. Antes de virar definitivamente as costas, voltou a dar uma enorme gargalhada. Parecia mais um menino de calças curtas diante de um fato inusitado. 

- Nos pescoços? Essa foi boa... e na barriga do defunto não encontraram nada que nos leve à alguma solução?
O anoso, muito sério e tremendamente compenetrado, continuou firme sem mover um músculo sequer das faces tostadas pelo tempo.
- Perto das guelras... o senhor precisava estar aqui, na hora fatal. Ia se certificar de que não estou mentindo.
- O senhor já viu, alguma vez, essas abelhas por aqui?
- Até acontecer essa fatalidade com meu amigo, não.
- Saberia informar, ao menos, de onde poderiam ter vindo?

O vetusto apontou com o cachimbo para o céu ainda um pouco azul acima da cabeça deles. Entardecia ligeiro.
- De lá.
- Das nuvens?
- Não, seu moço. De outro planeta. Acho que essas abelhas têm parentesco com seres de outras dimensões.
- Nessas alturas do campeonato o senhor vai querer me convencer que se eu sair por aí encontrarei uma nave?
- Não digo que o senhor tope com a nave. Mas, com certeza, tropeçará ou cairá no buraco fundo e enorme que ela deixou na hora de pousar. E quer saber? Caminhe dois quilômetros naquela direção, mata adentro, e topará com ele...
- Ele... ele quem?
- O buraco.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Belo Horizonte, nas Minas Gerais. 8-5-2018

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