Aparecido Raimundo de Souza
Tompson de Panasco.
O DELEGADO BEZERRA, QUE VIERA da capital, para investigar, no
pacato vilarejo de São Timóteo Guerreiro, perdido em meio à densa floresta, às
margens do Rio Pacatatu da Cutia Não, viajou quase trezentos quilômetros por
estradas asfaltadas e depois, mais uns noventa, por trilhas de chão batido até
alcançar seu objetivo principal. Finalmente, muitas horas sentado ao volante da
viatura (parando apenas para as necessidades básicas e o esticar das pernas)
topou com a localidade. São Timóteo Guerreiro. Parou o carro em frente ao que
parecia ser uma vendinha, e olhou em volta. O fim de mundo tinha pouco mais de
cinquenta construções espalhadas ao longo da via principal.
Ao comprido dessa alameda,
havia uma pracinha entrelaçada a um jardim esmerado, com destaque para uma
árvore centenária debruçada sobre um quase coreto destruído. Nele, cachorros
famintos, dormiam à sombra do silêncio que reinava. Também se notava a presença
de bancos de cimento espalhados e uma igrejinha contígua a uma edificação de
dois andares pintada num amarelo esmaecido com os telhados caindo aos pedaços.
Certamente ali morava o padre. O delegado pretendia não se demorar, visto que,
numa primeira vasculhada, não vira restaurante, hotel, bar ou pensão, além
daquele empório de duas portas com vassouras, rodos, ancinhos, enxadas, pás,
picaretas e uma dezena de escadas de vários tamanhos, churrasqueiras, sacos de
carvão, bacias, latas, redes, e, claro, uma infinidade de varas de pesca,
encostadas as portas, certamente para comercialização. Nesse local onde Judas perdera as botas, e
possivelmente gastara as trinta moedas de prata, que recebera por entregar
Jesus Cristo, um mistério desafiava o inconcebível. A estranha e misteriosa
morte de um pescador que todos conheciam por Chico Beiçola. Chico Beiçola havia
passado desta para melhor, e encontrado “caro
data vermibus” por pescadores numa das margens do imenso rio que cortava a
região. O homem todo de preto saltou sem pressa, ajeitou o revólver a cintura,
o distintivo no peito e passou a mão numa pasta e entrou no estabelecimento. Deu
com um gordo por trás de um balcão enorme, semelhantemente cheio de
quinquilharias.
- Boa tarde, meu prezado.
- Boa tarde cavalheiro. Em que
posso ajudar?
- Meu nome é Bezerra. Vim da
capital para averiguar o ocorrido com um companheiro de vocês, o Chico Beiçola.
- Entendo. Foi realmente um
amigo e grande a perda para nossa comunidade. Todos gostavam dele. Vivia
sozinho, no final do asfalto. Não tinha inimigos. Tudo o que ganhava, vinha do
suor da sua pesca.
- O que o senhor sabe do
passamento dele?
- O que todos aqui sabem.
- E o que todos por aqui
sabem?
- Não muita coisa, senhor. Foi
encontrado por pescadores. Todo mordido ou picado sei lá. Tem uma pessoa que
poderá lhe dar maiores informações...
- Seria essa pessoa o seu Zé
Bicão?
- Ele mesmo. A criatura certa.
Pescavam juntos. Além de amigos há muitos anos. Quase irmãos.
- Pelo que me falaram na
capital, antes de empreender esta viagem, todos aqui nas redondezas disseram
que esse cidadão, o seu Zé Bicão, foi à única testemunha que presenciou os
momentos finais do falecido antes que ele perdesse a vida no momento em que
quase alcançava a linha da marina onde, aliás, fica sediado o barracão da
colônia de pescadores. Estou certo?
- Certíssimo. O senhor tem
toda razão. Zé Bicão poderá lhe esclarecer todos os detalhes.
- E onde fica esse barracão da
sede da colônia?
O velhinho procurado trazia no
rosto inteiro, uma enorme e espessa barba branca. Parecia meio seco, porém, na medida
em que o delegado se aproximava, percebeu um sujeito musculoso e sólido. Fumava
um cachimbo antigo, ao tempo em que espiava (as feições ainda crispadas pela
dor) as águas barrentas do flúmen caudaloso que se perdia no sem fim do
distanciado. O recém-chegado pigarreou para se fazer notar, e quando o outro o
divisou, na ponte que levava até onde estava, indagou:
- Bom dia, meu senhor. Meu
nome é Bezerra. Delegado de polícia da capital.
- Prazer. Eu sou o José
Francisco. Conhecido por aqui como Zé Bicão.
Em que posso lhe ser útil?
- Gostaria que me contasse
direitinho como tudo aconteceu com seu amigo, o Chico Beiçola. Pelo que apurei,
até agora, o senhor foi o derradeiro a vê-lo antes do falecimento. Procede?
Empostando a voz, como se
fosse importante o que diria, esclareceu:
- Procede sim. Se o senhor
quiser realmente ouvir...
- Com certeza. Faça as honras
de anfitrião do caso. Pode começar a hora que quiser. Fique à vontade...
O ancião deu uma tragada longa
em seu cachimbo e encarou o policial que o contemplava encostado agora numa
viga de madeira que acessava o carreiro onde pequenos barcos e caíques se
achavam amarrados.
- Beiçola, seu moço, vinha
vindo embora para casa. Estava bem ali, ó. Ta vendo aquela ilhazinha quase
perto da margem?
- Ali? Perto daquelas pedras?
- Não, lá, depois dos
manguezais.
- Tudo bem, continue...
- Ele viajava numa piroga.
O policial esboçou um sorriso
jovial, intimidado pelo franzido de testa que lhe endereçou o veterano.
- Piroga?
- Canoa. Piroga, por aqui, é o
mesmo que canoa.
- Entendi. Continue...
- Beiçola é um grande
pescador.
- Era! O senhor quis dizer,
era?
- Não, é. Mesmo depois de
morto ele continuará sendo um pescador. Um grande e excelente pescador.
O policial sorriu de novo a
esta observação infantil, percebendo, todavia, a humildade de seu interlocutor.
O setentão se manteve firme. Exprimia uma audácia tranquila, despida de
qualquer resquício de ironia.
- Está bem. Vamos supor que
seja assim. E daí?
- Beiçola segurava dois remos
enormes. A embarcação dele era do tipo dessas atracadas aí atrás do senhor,
está vendo? Notadamente a pintada de azul. A bichinha vinha cheia de peixes.
Abarrotada. Então aconteceu...
- O que aconteceu exatamente?
Sob as pálpebras
congestionadas o prisco explicou:
- Elas, as abelhas chegaram em
chusma... vieram dali...
Zé Bicão apontou para uma
espécie de bosque onde crescia uma vegetação densa crestada pelo sol.
- Chegaram em vigoroso
barulho...
- Enxame?
- Que seja!
- Mas eu soube, pelos vizinhos
que foram à delegacia, que o Chico Beiçola morreu afogado. Afinal, foi afogado
ou picado?
Nesse instante, a voz do
arcaico se abrandou imperceptivelmente.
- Acho que foi, no meu
entender, afopicado...
- Como? Afo... afo o quê?
Quer, por favor, repetir?
- Afopicado, moço. Afogado com
picado ou vice-versa.
- Seja mais claro, por
obséquio.
- Veja bem, seu delegado - disse num pensamento obsessivo. - Quando as
abelhas estavam se aproximando, o barco dele, calejado de guerra, sentindo a
presença fria da Senhora da Foice e temendo ser mordido...
- Picado?
- Com medo de ser picado, o
barco, ladino, esperto, ligeiro, não esperou pelo pior. Se armou de coragem e
pá, puf!
- Explique pá, puf.
- Saiu correndo...
O policial não pode deixar de
dar uma estrondosa gargalhada e aproveitar para fazer uma piadinha.
- O barco saiu correndo! As
carreiras. Correndo ou nadando?
- Escuta só, meu senhor. A
coisa é séria. Não estou aqui pra brincadeiras. Pois bem! Acho que nem uma
coisa nem outra. A embarcação, a meu ver, deixou o local em desabalada
navegância, ou a toda velocidade, como se costuma dizer na linguagem nossa,
própria dos pescadores. O senhor entende, não é? Os barcos navegam. Resumindo: a piroga antes
de “tirar o time”, pulou fora. Por algum motivo inexplicável, emborcou. Antes
que o senhor me pergunte o que é emborcar... a droga virou de barriga para
baixo. Depois que se livrou da carga, deu no pé. De vez. Se deixou ser levada
pela correnteza...
- Entendo! Emborcou, entornou.
E as abelhas?
- Como perderam de vista o
barco, deram meia volta e caíram com tudo em cima do infeliz do meu amigo Chico.
Que Deus o tenha! Pobre Beiçola!
- Alto lá. Dentro da água?
- Sim. Dentro da água. Qual o
espanto?
- Não sabia que abelhas
nadavam.
- Abelhas não nadam, meu
senhor. As que conhecemos. As que vemos todos os dias. As que fizeram uma
morada logo ali perto da trilha. Essas, porém, que atacaram Chiquinho, eu
classificaria de diferentes.
- Diferentes? Como diferentes?
- Diferentes das que estamos
acostumados a ver todos os dias. Essas malditas, “daquela marca que acabaram”
com a vida do meu amigo. As pestilentas
nadam borboleta, costas, peito e livre. Juro que vi com esses olhos que os
vermes da terra ou os peixes aqui desse rio um dia se “banqueteará”.
- Daquela marca?
- Exato senhor. Daquela
marca...
- Não seria daquela espécie?
- Que seja como o senhor
falou. O fato é que elas voaram, mergulharam, nadaram cachorrinho. São feras,
inteligentes, mais até que os pacatos e broncos aqui da vila. Desde molecotes
trabalhamos nesse rio. Tem uma turminha dessas abelhas, só para o senhor
entender, que pulam de cabeça, em busca do néctar, para produzir não o mel, mas
um líquido aquoso e malcheiroso.
Mais e mais gargalhadas.
- O senhor está me dizendo que
as abelhas picaram seu Francisco, perdão, seu Chico enquanto ele estava dentro
da água?
- Perfeitamente.
- Mas...
- Até um bando de peixes, na
hora da confusão, “saíram” lanhados...
- Se entendi direito, picados?
Um cardume saiu picado?
- Mais ou menos isso. Sabia
que encontrei um par deles com ferrões enormes “nos pescoço?”.
O policial estava às voltas de
desistir daquela conversa fiada. Afinal, não chegaria a lugar algum dando
atenção àquele infeliz, ouvindo a sua prosa de bocó. Perdera tempo, um tempo
precioso, a seu ver. Antes de virar definitivamente as costas, voltou a dar uma
enorme gargalhada. Parecia mais um menino de calças curtas diante de um fato
inusitado.
- Nos pescoços? Essa foi
boa... e na barriga do defunto não encontraram nada que nos leve à alguma
solução?
O anoso, muito sério e
tremendamente compenetrado, continuou firme sem mover um músculo sequer das
faces tostadas pelo tempo.
- Perto das guelras... o
senhor precisava estar aqui, na hora fatal. Ia se certificar de que não estou
mentindo.
- O senhor já viu, alguma vez,
essas abelhas por aqui?
- Até acontecer essa
fatalidade com meu amigo, não.
- Saberia informar, ao menos,
de onde poderiam ter vindo?
O vetusto apontou com o
cachimbo para o céu ainda um pouco azul acima da cabeça deles. Entardecia
ligeiro.
- De lá.
- Das nuvens?
- Não, seu moço. De outro
planeta. Acho que essas abelhas têm parentesco com seres de outras dimensões.
- Nessas alturas do campeonato
o senhor vai querer me convencer que se eu sair por aí encontrarei uma nave?
- Não digo que o senhor tope
com a nave. Mas, com certeza, tropeçará ou cairá no buraco fundo e enorme que
ela deixou na hora de pousar. E quer saber? Caminhe dois quilômetros naquela
direção, mata adentro, e topará com ele...
- Ele... ele quem?
- O buraco.
Título e texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Belo Horizonte, nas Minas Gerais.
8-5-2018
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Enquanto isso, no “Castelo da Dinamarca”, os exemplos anômalos brotam, a cada minuto, como vermes de esgoto
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