A defesa da saúde física e mental da
espécie humana a longo prazo beneficiará da manutenção da designação deste
coronavírus como «vírus chinês», tal como o presidente norte-americano tem insistido.
Gabriel Mithá Ribeiro
Num ápice, o mundo está a
subverter o vírus chinês de patologia física (de gênese
biológica) em patologia mental (resultante da propagação de ideias e crenças
distópicas). O lado mental da pandemia sobressai a cada dia dada a evidência
crescente da ciência propriamente dita não ter tido tempo de se afirmar face a
um vírus desconhecido até 2019. A toque do fortíssimo impacto mundial das
tecnologias de informação e comunicação, a ideologia e a política foram
remetidas para o âmago do fenômeno pandêmico, as maiores condicionantes dos
processos mentais coletivos.
No que concerne às
consequências da propagação no tempo e no espaço dimensão biológica, a pandemia não acrescenta novidades em relação ao que tem acontecido ao longo dos séculos. Novidade é
passarmos a considerar, como nunca no passado, a dimensão mental das pandemias,
uma das heranças mais nefastas do século com a qual é tempo de romper.
Pouco ou nada aprenderemos com
o vírus chinês se, enquanto sociedades e civilizações, não
investirmos desde já nos pressupostos morais (refletidos no
dilema entre atribuir primazia à saúde coletiva ou à sobrevivência socioeconômica
coletiva cujo desfecho prático ninguém honestamente conhece) e nos
consequentes pressupostos intelectuais (refletidos no dever de
autonomizar o lugar da ciência do lugar da manipulação
política da ciência) associados à pandemia como condição da busca da
serenidade mental coletiva, mais não seja porque as atitudes e os
comportamentos, dos individuais aos coletivos, desempenham papel crucial nos
momentos em que os riscos são inevitáveis.
Como ninguém tem certezas da
direção correta para além das suas certezas ideológicas e políticas e, por
isso, a tolerância à diversidade dada a diversidade de pessoas e espaços
revela-se, no imediato, a regra de ouro. É já muito evidente que será apenas
dentro da cabeça de cada um de nós que subsistirão os maiores riscos pandêmicos
a médio e longo prazos. Nesse sentido, se o debate público marginalizar os
pressupostos referidos, as sociedades e o mundo podem ir ultrapassando as
pandemias do momento, mas dificilmente conseguirão romper com surtos de
retornos cíclicos. É esse salto qualitativo que temos de exigir uns aos outros
como condição de uma nova vitória civilizacional.
O mundo não teria desembocado
num estado de desorientação mental sem precedentes, em primeiro lugar, se a
opacidade e demais disfuncionalidades das ditaduras e regimes atuais de génese
comunista tivessem sido histórica e socialmente exorcizadas, o que nunca
aconteceu. Em segundo lugar, se a autorresponsabilidade individual e sobretudo
coletiva – de cada comunidade, povo ou país – tivesse sido imposta enquanto
inevitável princípio moral universal.
O atual vírus chinês na
sua dimensão mais significativa, a mental coletiva, mais não é do que uma nova
estirpe do já secular vírus mental comunista. Foi o último que
historicamente transformou a autorresponsabilidade coletiva num fardo reservado
apenas reservado ao Ocidente, o que desequilibrou no último século a ordem
moral do mundo. Não é possível conjugar o ideal moral de responsabilidade com o
ideal de vitimização.
Em vez da China, se a atual
pandemia tivesse sido espoletada nos Estados Unidos da América, Alemanha,
Japão, Israel, Austrália ou Brasil de Bolsonaro a autorresponsabilidade e
responsabilização imposta por terceiros sobressairiam, sem hesitações e desde o
início, e bem, como condicionantes-chave da gestão da crise. Esse é justamente
o antídoto mental mais poderoso contra o desastroso descontrolo mundial a que
assistimos, uma fonte perigosa de todo o tipo de agressividades porque
desregula o alvo da culpa (sem aspas) e permite todo o tipo de manipulações de
vitimização.
O que fica óbvio da atual
pandemia é a subsistência de uma parte do mundo não-ocidental que mantém
regimes políticos e tradições culturais que vão atentando contra a condição
humana, por vezes com danos que assumem dimensões gigantescas (ambientais,
biológicas, humanitárias), e que simplesmente não partilha pressupostos morais
humanamente aceitáveis. O que fica também óbvio é que isso não tem a ver com
pobreza ou riqueza, apenas com a condição humana. A China passou de uma a outra
sem nada mudar a sua orientação moral coletiva. É isso que ameaça o mundo.
Não é por mero acaso que os
danos causados aos respetivos povos com potencial de contaminar os povos
vizinhos, e o mundo no seu conjunto, se têm manifestado a partir da China, no
passado soviético de Chernobyl (1986), também no presente da Venezuela ou, num
futuro previsível, de África. Por aí adiante. A sobreposição desse mapeamento
no espaço e no tempo com os territórios de maior impacto da herança mental
comunista é demasiada óbvia.
Claro que também houve graves
responsabilidades fora desse contexto, como as norte-americanas com as bombas
atómicas de Hiroxima e Nagasaki (1945). Todavia, esses episódios e os demais
dos regimes ocidentais têm sido exorcizados pela autorresponsabilidade de
matriz judaico-cristã e filosófica e, precisamente por isso, não se repetiram.
Vivendo hoje uma ameaça cuja
propagação no tempo e no espaço o senso comum pode mapear sem dificuldades,
torna-se mais fácil compreender, por analogia, a propagação do vírus
mental comunista do qual deriva o atual vírus chinês.
Mapear no espaço e tempo a
pandemia-mãe
O vírus mental
comunista transitou da gestação, a fase das teorias intelectuais
(correspondentes ao significado que hoje atribuímos ao mercado de Wuhan), para
fenómeno social e histórico na URSS, nascida em 1922 após a revolução russa de
1917. Logo de imediato gerou vacinas cavalares na vizinhança ocidental
europeia, os historicamente posteriores fascismo (1922) e nazismo (1933), pelo
que os estragos causados se mantiveram circunscritos ao opaco mundo soviético.
Foi apenas após a segunda guerra mundial (1939-1945) que a epidemia se
transformou em pandemia, o início da propagação acelerada do vírus pelo mundo
no contexto bipolar da guerra fria (1945-1991), e num momento em que a Europa
perdeu as vacinas que a iam matando da cura, o fascismo e o nazismo.
Com o apoio dos Estados Unidos
da América, a Europa Ocidental, no entanto conseguiu gerar, logo a partir de
1945, novos anticorpos assentes na liberdade individual e na estabilidade das
instituições democráticas e, por isso, bem mais justos e autossustentáveis, mas
também permeáveis à ameaça do vírus mental comunista. Todavia,
existia a referência clara à fonte externa da ameaça, a então URSS, o que
permitia ao Ocidente controlar a circulação interna de um vírus que, nessa
fase, não era percepcionado como ameaçador por se limitar a circular em certos
meios restritos, entre académicos e partidos políticos sem grande expressão
social (alemães, franceses, italianos e, de algum modo, ingleses e
norte-americanos).
Nesse mesmo ciclo histórico da
guerra fria a situação do então terceiro mundo era muito
distinta. Este não se revelou capaz de gerar anticorpos contra a ameaça externa
representada pelo vírus mental soviético (territórios que à época representaram
os papéis atuais, para já, da Itália e Espanha). O então terceiro mundo acabou
martirizado por estar muito mais próximo de tradições rurais ancestrais e, por
isso, bem mais vulnerável a apelos à submissão do indivíduo a poderes
autoritários coletivistas como condição de modernização e prosperidade.
Todavia, esse caminho apenas
substituía o poder comunitário autoritário ancestral pelo poder
coletivista autoritário e revolucionário comunista, o último em tudo
estranho às tradições dos povos e, por isso, mental, social e economicamente
desestruturante. Daí ter-se instalado no terceiro mundo um
vírus mental gerador de pandemias nunca contidas cujos efeitos não pararam de
se manifestar nas décadas pós-coloniais. As vulnerabilidades geradas estão hoje
agravadas restando esperar que a virulência do atual vírus chinês,
como tem acontecido com outros, não se abata sobre elas.
A dominação colonial europeia
efetiva iniciada em finais do século XIX, em África, sendo também de origem
externa, no entanto tinha encaminhado os povos colonizados em sentido inverso.
Isso porque os colonizadores ocidentais, mal ou bem, iam libertando o indivíduo
enquanto tal da sua submissão a pertenças comunitárias ou coletivas ancestrais.
Como sempre, a liberdade nasce desse passo original, mesmo quando se rotulam os
indivíduos de assimilados (os primeiros negros a adquirir
hábitos europeus, hoje quase todos). Se retirarmos os óculos
ideológicos, essa herança não gerou patologias mentais coletivas e será
ela, no futuro, a boia de salvação mental do terceiro mundo.
Pelo contrário, o vírus
soviético, depois agregado ao vírus maoísta (1949),
propagaram-se fora do Ocidente que nem fogo em palha seca para predispor esses
povos contra a dominação colonial europeia e influência Ocidental em geral,
instigação justa, porém oferecendo-lhes caminhos de regressão moral e
intelectual em torno do ideal de vitimização coletiva.
Nada de semelhante havia
ocorrido nos processos de independência pré-soviéticos iniciados com a
independência pioneira dos Estados Unidos da América, no século XVIII, depois
estendidos à generalidade das Américas no século XIX. Essas nacionalidades
foram fundadas numa época de sanidade mental coletiva porque os novos povos
nasceram comprometidos com a sua autorresponsabilidade. Ao romperem com o pai
colonial na era pré-soviética, as nacionalidades americanas sentiam-se
moralmente compelidas a comprovarem a si mesmas serem capazes de se
autorregular e prosperar melhor do que na anterior condição menor de filhos
colonizados, e sem desculpabilizações externas.
A força dessas primeiras
independências resultou de não existir, à época, o vírus da vitimização mental
coletiva enquanto ideal moral. Este apenas foi gerado mais tarde, na
Rússia/URSS desde 1917 e fortemente propagado pelo mundo após 1945, como
referido.
Daí em diante, nenhuma nova
independência, entre asiáticas e africanas, escapou à pandemia mental
comunista. Mesmo os povos da América Central e do Sul, independentes desde o
século XIX, passaram a reinterpretar o sentido do seu destino coletivo à
moda soviética. O resto da história conhecemos pelo rol de má governação,
corrupção, pobreza, violência criminal ou armada (ou ambas), persistência de
ditaduras, entre outras misérias.
Por seu lado, os focos de
contaminação no Ocidente vindos do exterior apenas se tornaram ameaçadores a
partir de 1991 com o fim da URSS e da guerra fria. De 1991 em diante, o vírus
mental comunista perdeu a tutela soviética para sobreviver em rédea
solta nas mãos de franco-atiradores progressistas, uma nova ecologia que
provocou a disseminação e mutação do vírus. A Europa de Leste, que acabava de
se libertar da opressão soviética, gerou de imediato anticorpos contra a nova
estirpe enquanto os restantes afundaram-se na crise do Ocidente, hoje na curva
exponencial, para recorrer a uma expressão em voga.
À medida que se avançou para o
século XXI, a adoentada mente coletiva do Ocidente foi gerando novos
anticorpos, em geral ineficazes. Aconteceu na Áustria, França, Holanda, Itália,
entre outros territórios. A mudança efetiva veio de fora da Europa, do organismo
ocidental mais resistente, da sociedade norte-americana que apostou, desde
2017, no papel voluntário de anticorpo e estendeu a sua aura, entre outros, aos
brasileiros. Mesmo que a vitória do Brexit tenha ocorrido meses antes, talvez
os britânicos não tivessem resistido sem a força do renovado contexto
internacional.
Se a curto prazo não existe
alternativa ao combate pragmático e direto ou adaptação ao vírus
chinês (de Giuseppe Conte, na Itália, a Jair Bolsonaro, no Brasil, os
dois podem estar certos ou errados, o tempo dirá), o facto é que a defesa da
saúde física e mental da espécie humana a longo prazo beneficiará da manutenção
dessa designação, tal como o presidente norte-americano tem insistido. Ela
ajudará a encontrar a melhor porta de saída da atual pandemia que exige a
renovação da orientação moral e intelectual do mundo que tem de nascer da ruptura
com a patológica herança soviética de 1917 ou, numa perspectiva doméstica,
apostada na refiliação do Ocidente à sua própria tradição civilizacional.
Título e Texto: Gabriel Mithá
Ribeiro, Observador,
26-3-2020, 0h15
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Atualização, 26-3-2020, 20h30
ResponderExcluirNo mundo: 523 163 casos/23 639 mortes/122 059 recuperados.
Itália: 80 589 casos/8 215 mortes
França: 29 551/1696
Portugal: 3 544/60
Brasil: 2 915/77