O que os novos editores do STF pregam não é
apenas uma Constituição “viva”, mas uma Carta com 11 cabeças, 22 tentáculos e
que se alimenta de lagostas
Ana Paula Henkel
Qual é o papel adequado de um
juiz de uma Suprema Corte? Para o juiz norte-americano Antonin Scalia, um juiz
deve apenas aplicar a lei, jamais legislar ou atuar sem ser provocado.
Nomeado pelo quadragésimo
presidente norte-americano, Ronald Reagan, Scalia serviu à Suprema Corte dos
Estados Unidos de 1986 até pouco antes de sua morte, em 2016, e era considerado
um dos pilares jurídicos e intelectuais do originalismo e textualismo na defesa
da Constituição dos Estados Unidos. Ou seja, da doutrina segundo a qual “vale o
que está escrito”.
O textualismo, na obviedade do
nome, significa que a lei está no texto da própria lei. Junto com o
originalismo, que concede a esse texto o exato significado que ele conduzia no
momento em que foi aprovado, a linha de ação de juízes que prezam por essa
conduta mostra apenas o mínimo do que um país sério merece de suas cortes: leis
não são “organismos vivos” a ser moldados por modismos, pela “voz das ruas” ou
por caprichos de juízes. Scalia era irredutível quanto a isso: “As palavras têm
significado. E seu significado não muda”. O trabalho e a obra de Antonin Scalia
são tão permanentes que até políticos da ala mais progressista do Partido
Democrata rendem homenagens ao juiz conhecido por seu tradicionalismo.
Não que eu seja uma expert em
direito, mas, diante da atual juristocracia que vivemos no Brasil, a ditadura
de togas em que se tem como lei os desejos ensandecidos de quem nunca recebeu
um voto, fico imaginando se nossas figuras togadas acadêmico-militantes sabem
quem foi Antonin Scalia e o que textualismo significa. Se ultimamente nem a
Constituição parecem conhecer, parece-me pouco provável.
Para os pigmeus
morais que ocupam nosso STF, só no grito e no gogó
Infelizmente, não acredito que
veremos um intelectual e ministro como Scalia no Brasil, onde juízes
intelectuais são joia rara. Nossas criaturas togadas poderiam ter saído das
páginas de O Príncipe, de Maquiavel: “É desejável ser amado e temido,
mas, caso seja necessário escolher apenas um deles, é mais seguro ser temido do
que amado, pois as pessoas temem mais ofender quem se faz temer do que quem se
faz amar”. Quem não tem Scalia caça com Toffolis e Alexandres. Para os pigmeus
morais que ocupam nosso STF, só no grito e no gogó.
Gritaria para eles, mordaça
para nós. Os meninos mimados que resolveram brincar de democracia agora
resolveram brincar de editores da nação. Segundo Dias Toffoli, a Suprema Corte
do Brasil pode editar o que podemos falar, o que podemos publicar, o que
podemos ler e ouvir. O que os novos editores pregam não é apenas uma
Constituição “viva”, como Scalia alertava ser uma afronta às engrenagens
democráticas, mas uma Carta com 11 cabeças, 22 tentáculos e que se alimenta de
lagostas.
A inspiração maquiavélica, no
entanto, não é luxo para nosso mostrengo de 11 cabeças. Marx mantinha as
páginas de O Príncipe ao lado da cama, Antonio Gramsci e sua
filosofia tão presente na esquerda brasileira são a descrição de Maquiavel, e
Napoleão Bonaparte eternizou pensamentos sobre a obra em suas anotações. Os
revolucionários de toga bebendo na fonte dos revolucionários do mundo. Aww.
Emoji de coração.
Como explicar a ação
dos editores do STF ao juiz Scalia? “What?”
Depois da edição de nossa
Constituição, ao vivo e em cores para todo o Brasil, pelo editor Ricardo
Lewandowski no impeachment de Dilma Rousseff, nossos editores
capricharam na hora extra. Já anularam condenações da Lava Jato, já libertaram
bandidos, já meteram a colher na cumbuca de assembleias estaduais, já proibiram
operações policiais em comunidades, já expediram mandados de busca e apreensão
contra aliados do governo, já blindaram opositores do governo contra mandados
de busca e apreensão, já cancelaram delações premiadas que colocavam amiguinhos
da Corte na lama do parquinho, já soltaram o médico estuprador Roger
Abdelmassih, Eike Batista, Sérgio Côrtes, Adriana Anselmo, Anthony Garotinho…
Gilmar Mendes, um dos
príncipes maquiavélicos encantados da Corte e que recentemente declarou que o
Exército brasileiro está se associando a um genocídio na pandemia, até meados
de 2018 havia libertado quase 40 presos da Lava Jato. Segundo o editor Mendes,
muitos desses acusados de crimes graves que envolviam quantidades astronômicas
de dinheiro não apresentavam ameaça à sociedade e, por isso, as prisões
poderiam ser substituídas por “medidas restritivas menos gravosas”.
Depois veio o inquérito
bizarro das fake news do editor Alexandre de Moraes, com
capítulo especial à parte para a prisão tirânica de jornalistas que criticaram
a Corte e alguns editores.
Moraes mandou bloquear 16 contas de aliados do
presidente Jair Bolsonaro no Twitter e 12 perfis do Facebook, violando
diretamente o artigo 5º da Constituição Federal — “é livre a manifestação do
pensamento” —, com multa diária de R$ 20 mil para as empresas caso não
obedecessem imediatamente à sua birra, digo, decreto. O editor-tiranete da
Corte ampliou o alcance do bloqueio das contas para fora do Brasil, baseando-se
em um inquérito ilegal, imoral e inconstitucional. Já pensaram explicar esse
processo a uma pessoa da estirpe e da seriedade do juiz Scalia? “What?”
“Você teria de ser
um idiota para acreditar no argumento da ‘flexibilidade’ da Constituição”
Mas nem só de ativismos
ideológicos e esperneios midiáticos para a torcida progressista vivem nossos
editores maquiavélicos. Entre interferências em outros poderes, há espaço e
tempo para discutir cigarros com sabor, sacolas plásticas para supermercados e
demais urgências nacionais desse porte que não envolvam os encrencados com a
lei que contam com foro privilegiado.
Esta semana, a brincadeira de
nossos supremos companheiros no parquinho da democracia foi a de que a delação
premiada do ex-ministro Antonio Palocci não poderá ser usada na ação penal
contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros entenderam que
Sergio Moro, então juiz da Lava Jato, agiu de forma ilegal e por motivação
política ao anexar a colaboração de Palocci aos autos. Enquanto Edson Fachin
votou por manter a delação do ex-ministro no processo contra o ex-presidente,
os editores Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram pela exclusão das provas
dessa ação penal. Entenderam a edição?
Antonin Scalia, um norte
jurídico para democratas e republicanos da Suprema Corte da mais sólida
democracia do mundo, era muito claro em relação a suas decisões: “Se você for
um juiz bom e fiel, deve se resignar ao fato de que nem sempre gostará das
conclusões a que você chega. Se você gosta delas o tempo todo, provavelmente
está fazendo algo errado”. E completa: “Você teria de ser um idiota para
acreditar no argumento da ‘flexibilidade’ da Constituição”.
O Brasil sério não precisa
de fake news para constatar o supremo vexame quase diário dos
editores companheiros do STF. Só as news bastam.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, revista Oeste, 7-8-2020
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