quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Lula e o futuro do "lulismo" (não será na ONU, na FAO, na ACNUR...)

A 1 de janeiro, Lula da Silva vai passar a presidência do Brasil a Dilma Rousseff e não esconde em público a dor da despedida do poder. Agora vai criar uma fundação para disseminar ideias do seu governo e influenciar o destino do país e, quem sabe, voltar em 2014



revista Focus
Desde que se tornou uma figura pública, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu mostras de ser um homem emotivo e afeito a arroubos de franqueza, algumas vezes desconcertantes. Na Festa pelo seu 65º aniversário, comemorado no dia 27 no Palácio do Planalto, ele provou que continua o mesmo. Referindo-se ao fato de ser aquele o último aniversário que celebraria antes de passar a faixa presidencial adiante, afirmou: "Com toda a sinceridade, preferia que este dia não tivesse chegado". Na última semana, ele chorou quatro vezes em público. Lula entregará o cargo ao eu sucessor em 1º de janeiro. Para o Brasil, será o fim de uma era. Para ele, uma mudança pessoal tão brusca quanto a que enfrentou quando subiu pela primeira vez a rampa do Palácio, oito anos atrás. A rotina diária, com todos os seus detalhes, será a primeira coisa a amanhecer diferente em 2 de janeiro. Ao acordar, por exemplo, Lula não terá tido a visita noturna do funcionário destacado para dirigir-se ao quarto do presidente nas madrugadas com a função de verificar se o mandatário da nação repousa tranquilo. Lula gosta de contar do susto que levou na primeira noite que passou no Palácio da Alvorada. “Estava dormindo e, de repente, vi aquele sujeito no meu quarto. Só depois descobri que ele estava passando para ver se estava tudo bem". Hoje, muitas madrugadas depois, ele se sente tão a vontade no palácio que, ao convidar assessores e amigos para visitá-lo, costuma dizer apenas: "Passa lá em casa". Quando recebe novas visitas, gosta de exibir os tapetes e mostrar as vastas estantes de livros da biblioteca. “Já li todos", diz, brincando.


Das regalias funcionais que fazem parte do poder, e que se vão quando ele termina, Lula devera sentir especial saudade do Airbus da Presidência, o Aerolula, que recebeu em 2005. Ele não apenas gosta de viajar no jato como costuma se gabar do fato de tê-lo adquirido. "Precisava chegar um cara de coragem para fazer isso", costuma dizer. Como o funcionário encarregado de checar sua respiração nas madrugadas, outros em breve deixarão de servir-lhe para ocupar-se de seu sucessor, como o médico das Forças Armadas que acompanha os exercícios matinais do presidente e as duas funcionárias encarregadas de assegurar que sua roupa esteja sempre lavada, passada e com os botões em dia. Tudo is o acabara em janeiro. E Lula já decidiu como viverá sua nova fase.

Embora negue em público, o presidente cultivou planos de comandar algum órgão relevante da política internacional, como a ONU, o Banco Mundial ou a FAO, agência da ONU para agricultura e alimentação. Os projetos, porém, colidiram com a realidade - Lula não conseguiu apoio suficiente para eles. Em maio, o presidente reuniu-se no Rio de Janeiro com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, para expor sua pretensão. Ouviu que ela era inviável, dado que esses cargos costumam ser ocupados por diplomatas de carreira. Além disso, o alinhamento do Brasil com governos totalitários como os de Cuba, Irã e Venezuela enfraqueceu o presidente junto a comunidade internacional que define quem vai para onde. Ban Ki-moon chegou a oferecer a Lula o comando de uma ação que a ONU desenvolverá para combater o aquecimento global, ao lado da alemã Angela Merkel, mas a proposta não animou o presidente. A negativa de Ban Ki-moon não foi suficiente para que Lula desistisse do seu pleito. Meses mais tarde, ele teve uma conversa com o comandante do Acnur (agencia da ONU para refugiados), o ex-primeiro-ministro de Portugal António Guterres, mas o resultado foi igualmente desanimador.

Diante disso, Lula optou por um plano B. Abrirá um instituto que levará seu nome, nos mesmos moldes daquele que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso montou ao deixar o poder. O tucano seguiu o exemplo do ex-presidente americano Jimmy Carter, ganhador do Nobel da Paz de 2002 e até hoje cultuado como o melhor ex-presidente dos Estados Unidos. Bill Clinton, depois de deixar o cargo, em 2001, também criou um instituto de finalidades humanitárias. O de Lula cuidará do acervo de sua passagem pela Presidência e das obras do Instituto Cidadania, ligado ao PT e que já foi presidido por ele. Sua equipe se instalará na capital paulista em endereço de cartão-postal: uma confortável casa de três andares, com vista para o Parque do Ibirapuera. O imóvel já foi comprado e teve a reforma iniciada. O pecuarista José Carlos Bumlai, fornecedor da carne dos churrascos do Palácio da Alvorada, foi destacado para fiscalizar as obras, que incluem a construção de um memorial da Presidência, salas para reunião e arquivos e espaço para os presentes que ele recebeu. O instituto contará com duas suítes para Lula e pessoas de sua intimidade. Os amigos do atual presidente já escalaram mantenedores para a instituição. Entre eles estão as empreiteiras Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez e o grupo JBS. Uma vez acomodado em seu novo escritório, Lula promete voltar a por o pé na estrada. Quer viajar pelo interior do país para ver os resultados do seu governo. O plano é reeditar a Caravana da Cidadania, que ele organizou para se preparar para a eleição presidencial de 1994. Sua principal ação, porém, não será no Brasil. Lula ambiciona fazer do instituto um meio para exportar a tecnologia de combate a fome que acredita ter desenvolvido em seus oito anos na Presidência. Quer viajar o mundo em palestras e firmar convênios com governos de países pobres, principalmente na África e na América Central, para ações de combate à fome, agricultura familiar e desenvolvimento do etanol.

Este parece ser o futuro imediato do futuro ex-presidente. Já no longo prazo, restam incógnitas. A primeira delas diz respeito ao destino que ele dará a sua maior criação, o lulismo. Os cientistas políticos acreditam que a resposta para essa pergunta independe de quem será seu sucessor. Ela está vinculada unicamente à posição que o presidente assumir daqui para a frente. Se ele de fato se afastar da política, como chegou a prometer, o lulismo tenderá a esmaecer. Como o getulismo, vai se resumir a uma referência histórica - um quadro na parede. Se, no entanto, Lula trocar os dias de descanso em seu sítio pela militância política em qualquer esfera, vai assombrar quem quer que ocupe a cadeira que foi sua - como oposição ou influência, não necessariamente solicitada. A segunda questão demorará um pouco mais para ser respondida: concorrera Lula a Presidência em 2014? São muitos os indícios de que sim, a começar pelo fato de onze entre dez interlocutores do presidente apostarem na tese. "Nenhum animal político do peso do Lula veste o pijama aos 65 anos", diz o cientista político Paulo Fábio Dantas, da Universidade Federal da Bahia.

É verdade que Lula resistiu a tentação do terceiro mandato, mas também é fato que cogitou dele. Tanto assim que, em discurso recente, expressou arrependimento pelo abandono da ideia. No fim de agosto, durante a cerimônia de sanção da lei complementar que criou o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, brincou, dirigindo-se ao ministro da Defesa, Nelson Jobim: "Você poderia, junto dessa emenda complementar, ter mandado uma emendinha para mais uns anos de mandato". Desde a redemocratização, a maioria dos presidentes que deixaram o cargo não conseguiu deixar a política, mesmo quando os eleitores os abandonaram. José Sarney teve de mudar seu domicílio eleitoral para o Amapá para se eleger senador. Fernando Collor, após ter sido apeado do poder, perdeu uma eleição ate se eleger senador por Alagoas. Itamar Franco tenrou, sem sucesso, voltar 11 Presidencia e se contentou em eleger-se governador e senador. A história da América Latina registra um caso em que a dificuldade de desencarnar do poder atingiu o paroxismo. Entre 1960 e 1996, o dominicano Joaquín Balaguer cumpriu sete mandatos presidenciais em seu país. No penúltimo, já estava cego e praticamente surdo, o que não o impediu de governar ate o fim, concorrer e vencer na eleição seguinte (acusado de fraudar o pleito, como da vez anterior) e, em 2000, aos 94 anos de idade, disputar a Presidência pela derradeira vez, com a saúde completamente debilitada. Foi derrotado e morreu dois anos depois. No Brasil, o único ex-presidente que controlou a tentação de disputar eleições foi Fernando Henrique, que se manteve como conselheiro do seu partido, o PSDB.

Lula deixa a Presidência com uma popularidade recorde e alguns feitos notáveis. Deixa também a mancha dos escândalos que marcaram o seu governo, sendo o mensalão a mais indelével delas. Esses registros pertencem ao passado e são imutáveis. Já a forma com que Lula continuará a escrever a sua biografia a partir de agora é uma decisão que depende exclusivamente dele - e ela será fundamental para definir seu lugar na história.
Texto: Laura Diniz, Sandra Brasil e Otávio Cabral, com reportagem de André Vargas, Kalleo Coura e Marcelo Sperandio/Veja
Revista Focus, Portugal, 10 a 16/11/2010

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