Eugênio Bucci
As irmãs Cajazeiras entraram
para a história da telenovela brasileira em 1973, com O Bem-Amado, uma das criações geniais de Dias Gomes. As Cajazeiras
eram três solteironas mal-amadas e reprimidas que andavam emboladas, como um
ente mitológico de seis pernas e três cabeças, esgueirando-se pelas calçadas
estreitas da fictícia Sucupira. As três, Dorotéia (Ida Gomes), Dulcinéia
(Dorinha Durval) e Judicéia (Dirce Migliaccio), perambulavam aos fuxicos
íntimos, praguejando contra os outros personagens e declarando seu amor
ardente, louco e platônico (que depois enveredaria pelas vias de fato) ao
“coroné” que mandava na prefeitura, o impagável Odorico Paraguaçu (Paulo
Gracindo). Elas bem que remoíam seus ressentimentos contra os desmandos de
Odorico - desmandos amorosos, inclusive - mas, fiéis como cachorras, não o
criticavam publicamente. Jamais.
Agora, o espírito desgarrado
das irmãs Cajazeiras parece querer sair da história da telenovela e ingressar
na história do Brasil real. Os adoradores e as adoradoras que circundam a aura
de Luiz Inácio Lula da Silva, como guardadores de uma imagem estacionada no
meio-fio da política, carregam em silêncio eventuais dores e dissabores.
Nunca ousam expressar em
público uma letra, uma vírgula de discordância, mesmo que num discreto e mudo
repuxar de sobrancelhas. A lealdade irracional e fervorosa desses (e dessas)
tomadores (e tomadoras) de conta não cede. Todos e todas, possuídos e possuídas
por sua devoção incondicional, numa idolatria que arrebata ateus e crédulos
indistintamente, não deixam que se veja em seu ídolo um único lapso de um único
desvio. O cenário é francamente grotesco. Blindaram Lula a tal ponto que o
ex-presidente começa a lembrar, inadvertidamente, a figura caricata do
bem-amado de Dias Gomes. Como um Odorico involuntário, cercado de elegias e
apologias tão fa-natizantes quanto patéticas, vê-se prisioneiro do culto de si
mesmo. Tão refém que não tem o que dizer. Ou: não tem como dizer o que deveria
dizer.
De tudo o que vem explodindo
em matéria de escândalos que arranham ou evisceram a reputação do PT e do
governo federal, de mensalão a Rosemary, o que mais chama a atenção é
exatamente isso: ninguém, ou quase ninguém, virtualmente ninguém no campo do
lulismo esboça uma crítica aberta e de boa-fé. No máximo, quando muito, um ou
outro considera que seria positivo se o supremo guia se pronunciasse, quem
sabe?, mas ninguém parte para o debate franco, destemido, verdadeiro, em
público. É como se, aos olhos da nova religião dos idólatras, a opinião pública
fosse território inimigo. É como se, fora das hostes do partido, ninguém mais
tivesse direito à verdade.
O cajazeirismo vai se impondo
como a doença senil do lulismo. Figuras públicas até outro dia respeitáveis por
seu espírito livre e por sua inteligência ferina vão se rendendo ao silêncio
que faz corar os mais ferrenhos adversários. Seria cômico se não fosse
melancólico.
O Odorico da ficção errava na
ética e na gramática (era dado a expressões como “talqualmente” e
“emborasmente”, além de “apenasmente”, evidentemente), mas tudo na maior
empáfia, com empolação e galanteios. Demagogo e autoritário (pois servia de
sátira contra o regime militar), fazia da pose o critério da verdade e da
moral. Quando precisava acobertar suas trapalhadas, tinha até um assessor de
nome Dirceu, o Dirceuzinho Borboleta, borboleteante demais para se prestar a
qualquer semelhança com personagens dos tempos presentes. Odorico, em dupla com
Dirceu Borboleta, encarnava a esculhambação em feitio de realismo fantástico.
Bendita esculhambação. Desclassificado e vaidoso, demagogo e ignaro, fez muito
bem aos telespectadores dos anos 1970: ajudou-os a rir dos opressores.
Agora, a cena é distinta. Não
há mais ditadura militar no país. Hoje, a assombração de Odorico retorna para
zombar não mais de um tirano, mas de um formidável expoente do período
democrático, seqüestrado pelo culto à personalidade. O Lula real é muito, mas
muito superior à adulação alienante que o sufoca. De líder metalúrgico a
presidente da República, deixou uma obra que, em grande parte, orgulha todos os
brasileiros. Teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se
aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no
mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é
oco.
Lula, abduzido pelo
cajazeirismo, dá sinais de fraqueza. Quanto às irmãs Cajazeiras, que fizeram o
Brasil se dobrar de rir, talvez ainda façam o PT chorar.
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