terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Brasil: do querer ao saber

Uma ânsia de progresso ainda por satisfazer
Desidério Murcho

Sabemos hoje que o desenho das instituições de um país é fator determinante para a produção ou inibição de riqueza e bem-estar. Com regras, leis e instituições adequadas, os brasileiros, como qualquer outro povo, serão capazes de construir um país mais justo, mais rico e mais realizado. A primeira dificuldade é não haver da parte das elites, que tudo têm a ganhar com as injustiças atuais, qualquer incentivo para mudar as regras.
A segunda é que não basta querer: é preciso saber.

No famoso A Viagem do Beagle, publicado originalmente em 1839 com outro título, Charles Darwin mostra-se maravilhado com a pujança da flora e da fauna que encontra no Brasil, na zona do Rio de Janeiro, mas desolado com os costumes. Numa das passagens mais significativas, sobretudo se tivermos em conta a mentalidade da época, não muito dada a ver as pessoas de outras nações como inequivocamente humanas e dignas de consideração, Darwin conta a história de uma escrava foragida que recusou entregar-se aos seus perseguidores, preferindo atirar-se do alto de uma das imensas formações graníticas típicas da região, lugar improvável no qual vários escravos tinham conseguido esconder-se e extrair uma vida miserável, cultivando o parco terreno que ali encontraram. “Numa matrona romana”, comenta Darwin, “este gesto teria sido designado nobre amor pela liberdade; numa pobre negra, é mera obstinação selvagem.” No Brasil, a escravatura só foi abolida em 1888, mais de cinquenta anos depois de ter sido abolida no Reino Unido. Poucas páginas depois, Darwin conta como ele e os seus companheiros de viagem foram muitíssimo mal recebidos numa estalagem local. Impressionou-o o desinteresse do estalajadeiro em atender adequadamente os clientes que constituíam a base do seu negócio.

Quando leio estas passagens de Darwin, pergunto-me o que mudou em mais de 150 anos no que respeita a estes três aspectos: a ecologia brasileira, o povo mais humilde e a vida económica. Que mudanças veria Darwin? Por um lado, o esplendor da fauna e da flora desapareceu dos lugares que ele visitou; Darwin teria de viajar muitas centenas de quilómetros para longe dos centros urbanos brasileiros para conseguir vislumbrar a natureza original desse continente. O Brasil dos grandes centros urbanos foi feito contra a natureza, sem atender à imensa beleza natural que, com algum custo, conseguimos descortinar no meio do desregramento urbano, da falta de sensibilidade estética, do amontoado de postes de eletricidade no meio das calçadas e ruas das cidades, paredes sujas e por pintar, lixo no chão, mau cheiro e ruas citadinas que nunca são lavadas. Porém, por outro lado, os serviços de má qualidade, a falta de profissionalismo de quem nos atende quando nos hospedamos, compramos uma refeição, um mero par de sapatos ou um café, não parece ter mudado tanto quanto seria desejável desde o tempo em que Darwin, para poder jantar, tinha de matar à pedrada as galinhas do próprio estalajadeiro.

O Brasil é um país imenso, com perto de 200 milhões de habitantes e cerca de 8 milhões de quilómetros quadrados de território – apenas menos 2 milhões do que a totalidade da Europa, se incluirmos a Europa do Leste. Grande parte do território brasileiro está desabitado; em termos comparativos, note-se que na Europa há cerca de 700 milhões de habitantes. Sendo aproximadamente da mesma dimensão do que os Estados Unidos da América, o Brasil tem menos cerca de 100 milhões de habitantes, apesar de aquele país da América do Norte se caracterizar por uma densidade populacional bastante inferior à europeia.

Dada esta imensidão territorial e populacional, que interesse terão as observações assistemáticas de um europeu que a estas terras arribou, mas delas não conhece senão uma pequena parcela estatisticamente irrelevante? Sem pretensões de cientificidade, nem de representatividade, as observações feitas em alguns dos grandes centros urbanos, a única parte do Brasil que conheço, coincidem com o único Brasil que parece existir oficialmente: o único Brasil representado na televisão e nos jornais, o único Brasil que os políticos têm em mente, o único Brasil que influencia a legislação e a política brasileira. E logo aqui nos deparamos com uma realidade desagradável neste país: os brasileiros que vivem longe dos grandes centros urbanos são política e socialmente invisíveis. As pessoas têm até vergonha de dizer que vivem em estados como Acre, Mato Grosso, Rondónia ou Roraima, sobretudo se não vivem nos centros urbanos desses estados. Mesmo num estado como Minas Gerais, onde vivo, é um estigma cultural e social viver longe da capital, Belo Horizonte.

Belo Horizonte, foto: Marcus Desimoni
Há uma ânsia de progresso em muitos brasileiros, nomeadamente os mais jovens, que desejam ter o estilo de vida norte-americano e europeu que veem na televisão. Muitos deles querem afastar-se das formas de vida que consideram ultrapassadas das suas cidades de origem no interior do país. Anseiam por uma vida urbana, que para eles significa avenidas, discotecas, carros, centros comerciais. Um dos sinais desta ânsia de urbanismo (que não, infelizmente, de urbanidade) foi a proliferação de telemóveis, que ainda continua, agora com os caríssimos smartphones. Num país onde muitas pessoas ganham aproximadamente mil reais por mês (cerca de 350 euros), os telemóveis de 600 reais são comuns, mesmo entre pessoas sem muitos recursos financeiros.

As conquistas económicas e sociais recentes do Brasil são notáveis, havendo hoje uma geração de jovens com perspectivas de vida muitíssimo melhores do que as dos seus pais, e radicalmente diferentes das dos seus avós. E os jovens são muitos: o Brasil tem uma população muitíssimo jovem, comparando com a Europa, porque até há pouco tempo era muito comum as pessoas terem mais de três filhos. A quantidade de jovens no Brasil é impressionante para qualquer europeu, onde encontramos pessoas relativamente velhas nos mais diversos serviços, ao passo que no Brasil ocorre precisamente o inverso: é raro encontrar uma pessoa com mais de cinquenta anos num serviço qualquer, ou mesmo na rua. Os velhos são raros, no Brasil.

Até recentemente, este país gigantesco esteve mergulhado numa crise económica e financeira contínua, com uma inflação mensal mortal, que fazia as pessoas gastarem todo o seu dinheiro assim que recebiam o ordenado, pois algumas semanas depois já valia muitíssimo menos. Aquando do Plano Real, que introduziu a nova moeda, hoje vigente, depois de várias tentativas infrutíferas para controlar a inflação, falei com um brasileiro que era na altura um ativista contra o Plano Real. Do seu ponto de vista, o Plano era um desastre, sendo a causa das desgraças brasileiras e não uma das suas mais visíveis consequências. Da sua perspectiva, ao invés de limitar brutalmente a impressão de papel-moeda, como previsto no Plano Real, os governantes deviam antes imprimir cada vez mais, para distribuir gratuitamente pelos mais pobres e assim os aproximar dos mais ricos. O seu raciocínio era que o papel com que se faz as notas é relativamente barato e por isso o Estado podia perfeitamente imprimir mais e mais notas para dar aos mais pobres.

Hoje talvez nos pareça inverosímil que alguém tenha pensado nestes termos, mostrando que evidentemente não compreendia o que faz um pedaço de papel ter valor real – do seu ponto de vista, era apenas uma questão de um governo declarar que um pedaço de papel tem valor – mas o que este caso tem de significativo é um dos aspectos mais preocupantes do Brasil contemporâneo: a mistura explosiva de desconhecimento com um ativismo político e social exuberante. Uma pessoa bem-intencionada mas ignorante é relativamente inóqua, se não for ao mesmo tempo ativista: mas se for ativista, tem tendência para empurrar os outros para o abismo mental em que se encontra. Se a estes dois fatores juntarmos a corrupção, a situação é alarmante e com consequências desastrosas.

Para um europeu, e mesmo para um norte-americano, um país desenvolvido sem uma rede ferroviária sólida é difícil de imaginar. Quem tiver estas carências imaginativas, tudo o que tem a fazer é vir ao Brasil. Fruto de desconhecimento, corrupção ou as duas coisas, os governantes brasileiros não só não expandiram as infraestruturas ferroviárias que tinham herdado do século XIX, como as desmantelaram. O resultado é um país quase completamente destituído de uma das vias de transporte cruciais em qualquer país desenvolvido, com custos económicos difíceis de avaliar. Pior: muitas estradas de muitos estados são sofríveis, e muitas não estão sequer alcatroadas. Isto para não falar das vias fluviais, cruciais também para o desenvolvimento económico, e que no Brasil servem sobretudo para despejar esgotos não tratados.

Sendo o governo federal brasileiro dono de uma arrecadação fiscal monstruosa (imagine-se as loucuras que fariam os governantes portugueses se arrecadassem a receita fiscal de toda a Europa), há sempre lugar para obras megalómanas que visam mostrar eficiências, riquezas e valores que não se têm – o que faz lembrar Portugal, precisamente, mas a outra escala de megalomania. Um exemplo disso são as várias cidades brasileiras fundadas de raiz no século XX, como foi o caso de Brasília, com projetos megalómanos de sofisticação e eficiência: o resultado, contudo, é apenas mais uma cidade com os mesmos problemas estruturais de qualquer metrópole. A campanha recente do Brasil para acolher os Jogos Olímpicos e o Mundial de Futebol são expressões desta megalomania, também associada à corrupção.

A formação profissional da generalidade das pessoas é muitíssimo deficiente, o que se reflete numa rede empresarial ineficiente, apesar da imensa vontade de tantos brasileiros de se aproximarem dos padrões europeus de qualidade, profissionalismo e empreendedorismo bem-sucedido. Um aspecto curioso, e contrastante, da vida brasileira é o tipo de livros que dominam as livrarias dos aeroportos e das grandes cidades: livros sobre gestão de empresas, criação de riqueza, liderança empresarial. Estes são os livros que encontramos à venda porque são estes os livros que as pessoas mais procuram nesses lugares. E isto é curioso porque mostra um divórcio infeliz entre a vida académica e cultural, por um lado, e a vida empresarial e económica, por outro. Uma característica de qualquer país adequadamente desenvolvido é o enriquecimento mútuo entre o estudo e a produção de conhecimento ao mais aprimorado nível académico e a vida empresarial e a criação de riqueza, empregos, produtos e serviços. Contudo, no Brasil há um divórcio profundo entre a cultura universitária e a vida económica. O discurso universitário, pelo menos na área das humanidades, reúne três características cujo convívio não é pacífico: por um lado, prega contra o “capitalismo” (nunca tinha ouvido esta expressão gasta e sem sentido definido tantas vezes na minha vida) porque visa defender as pessoas mais carenciadas; ao mesmo tempo, porém, despreza a vida empresarial e a atividade económica, que é a única maneira de arrancar os brasileiros da pobreza centenária, e consome desavergonhadamente os recursos dos contribuintes, dando quase nada em troca às populações que os alimentam.

O gigante norte-americano Amazon veio recentemente para o Brasil, para não perder o comboio do crescimento anual gigantesco do comércio na internet neste país. Apesar de funcionar não muito bem, o comércio na internet permitiu a muitos brasileiros encontrar o que desejam, comprar melhor e mais barato. Surgiram várias empresas brasileiras, que vendem vários tipos de produtos e que se pautam por um bom atendimento ao cliente. Contudo, estas empresas conseguem funcionar no Brasil porque já lhe conhecem as manhas e porque sabem lidar com os mil obstáculos que os Estados e o governo Federal impõem aos empresários. Estes acabam por ter de recorrer a meios menos transparentes para conseguirem dar aos seus clientes o que estes esperam. A Amazon tem sido um desastre relativo, não conseguindo competir adequadamente com as empresas estabelecidas, precisamente porque não é fácil funcionar economicamente num país onde há tantos obstáculos ao desenvolvimento da riqueza. A questão é que no Brasil, como também acontece em Portugal, a atividade económica não é vista pelos intelectuais como um aspecto crucial do desenvolvimento, mas antes como uma atividade perigosa que é preciso controlar, legislar e asfixiar.

Deste modo, o mau nome que têm os brasileiros, acusados de corrupção, é o resultado direto de decisões políticas, e não uma característica genética, digamos, das pessoas comuns, capazes de grande generosidade e humanismo. Dois exemplos ilustram esta ideia. Quando cheguei ao Brasil uma coisa que me fez impressão foi o hábito muito comum e extremamente prático de qualquer pequeno supermercado entregar as compras gratuitamente em casa, sem exigência de uma despesa mínima. Dada a má fama deste país, por vezes imerecida, no que respeita ao esbulho, cheguei a casa apreensivo – nem sequer tinha qualquer prova cabal da despesa feita. Mas, certo como um rio de desagua, as mercearias foram-me entregues. E assim continuou, sempre. Então, compreendi: esta é uma área sem qualquer intervenção deletéria da legislação, dos governos e das autoridades; é uma relação económica direta entre o cliente, o supermercado e o empregado. O empregado não tem qualquer incentivo para desviar produtos, porque se o fizer o cliente queixa-se ao comerciante, e se isto acontecer o empregado é despedido. As relações económicas correm sobre rodas precisamente porque nenhuma legislação, medida política, fiscalização ou outro artificialismo mal concebido estimula a corrupção. Outro exemplo ainda mais significativo é o que acontece num site latino-americano chamado Mercado Livre, que é uma cópia do conhecido eBay. Neste site qualquer pessoa pode leiloar ou vender qualquer coisa e qualquer pessoa pode comprá-la. Mas… e o risco? Quando comprei algumas coisas de baixo valor, fiquei apreensivo: depois de eu ter pago, se a outra pessoa não fizer a parte dela, poupando-se ao incómodo de me enviar pelo correio o que comprei, como faço? Mas, uma vez mais, o sistema funcionou. E voltou a funcionar, com produtos por vezes bastantes caros. Uma vez mais refleti sobre este aspecto: como pode um povo habituado a perder a honra para larapiar um simples telemóvel barato, ou um par de óculos escuros baratos (como me aconteceu), ser honrado quando estão em causa por vezes centenas de reais? Claro que este pensamento que fazemos de maneira muito natural sobre qualquer povo é sempre falacioso, uma vez que não são as mesmas pessoas que fazem uma coisa e a outra. Mas a apreensão não desaparece por isso. Depois fui ver melhor como funciona o Mercado Livre: tem um sistema de regras muito simples, mas muito bem pensadas, que premeia o comportamento honesto e desencoraja a fraude. E as pessoas reagem adequadamente: todas as minhas experiências foram excelentes, pois tratei com comerciantes atenciosos, honestos, eficientes e que sabem que o sucesso do seu negócio depende disso mesmo. Quando não há uma interferência deletéria dos governantes, não temos de matar à pedrada as galinhas do estalajadeiro.

Estes exemplos ilustram o que temos aprendido recentemente com estudos empíricos sobre a origem das diferenças de riqueza entre povos. Apesar de Jared Diamond insistir em fatores relacionados com os recursos naturais das diferentes regiões, o desenho das instituições é um fator determinante para a produção ou inibição de riqueza e bem-estar. Com regras, leis e instituições adequadas, os brasileiros, como qualquer outro povo, serão capazes de construir um país mais justo, mais rico e mais realizado. A primeira dificuldade é não haver da parte das elites, que têm tudo a ganhar com as injustiças atuais, qualquer incentivo para mudar as regras. A segunda é que não basta querer: é preciso saber.
Título e Texto: Desidério Murcho, na publicação “XXI – Ter Opinião 2014”, páginas 152 a 157;
Filósofo e escritor, é atualmente professor na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, Brasil. Fundou e foi diretor da revista de filosofia Crítica.
Digitação e Grifos: JP

3 comentários:

  1. Excelente relato, 'fórmula' para o progresso dos povos.

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  2. Excelente mas triste. Triste porque abre os intestinos da nossa sociedade e expõe escancaradamente a nossa brasileirice. Filosófico e esclarecedor. Foi a minha melhor leitura até então. Parabéns!!!
    Jonathas Filho

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  3. Notamos tudo isso que está escrito pelo filósofo, tanto no acontecido com o AERUS, como na difícil e incapaz resposta dos beneficiados, a uma brutal interferência do Estado em um plano de previdência privada, planos esses autorizados e fiscalizados pelo próprio Estado.
    Por outro lado os participantes, ou melhor a população Brasileira tripudiada, não tem condições nem intelectuais nem tampouco condições psicológicas para reagir à altura que o fato merece.
    O país se encontra anestesiado, seus meios de produção engessados, e o ´povo continua refém sem o perceber, que uma meia dúzia de idiotas está a comandá-los
    Triste país , tão rico e tão pobre ao mesmo tempo.
    José Manuel

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