"Na palavra lagryma, (…) a
forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica
ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é
offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá
profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do
abysmo, é transformal-o numa superficie banal."
Estas linhas de Teixeira de Pascoaes foram vertidas na revista A Águia como manifestação de repulsa pelas normas da Reforma Ortográfica de 1911. Uma rejeição menos sonora do que aquela que tem vindo a rodear o atual Acordo, pois os meios de circulação da opinião eram outros e o número de escreventes bem menor. Mas a polémica foi então forte e feia, colocando de um lado os que defendiam regras que buscavam adaptar a escrita à fala, e do outro aqueles que abominavam qualquer mudança capaz de mexer com os seus hábitos.
Estas linhas de Teixeira de Pascoaes foram vertidas na revista A Águia como manifestação de repulsa pelas normas da Reforma Ortográfica de 1911. Uma rejeição menos sonora do que aquela que tem vindo a rodear o atual Acordo, pois os meios de circulação da opinião eram outros e o número de escreventes bem menor. Mas a polémica foi então forte e feia, colocando de um lado os que defendiam regras que buscavam adaptar a escrita à fala, e do outro aqueles que abominavam qualquer mudança capaz de mexer com os seus hábitos.
Os argumentos dos que se
mostram contra a aplicação do atual Acordo Ortográfico mostram entretanto duas
caras. Uma positiva e honesta, que coloca problemas autênticos, dúvidas
compreensíveis e objeções que são legítimas; a outra encrespada e agressiva,
empapando a discordância de azedume, erros e até embustes. Afirmando, por
exemplo, que o governo brasileiro suspendeu o Acordo, quando se limitou a prorrogar
o período de transição. Esta atitude recorre a uma retórica de redução ao
absurdo que integra hipóteses insólitas e escolhas do legislador
sistematicamente inventadas (a mais usada é a eliminação da palavra «facto»,
coisa que o acordo não prevê), ou então casos que jamais se colocaram («o que
seria se tivéssemos de escrever assim…», «imaginem que…», «suponham lá…», «e se
optássemos por…», etc.). Seguindo uma lógica enganosa que desconsidera a
inteligência de quem escute tais raciocínios.
Fui dos que tardaram em adotar
o Acordo, só me tendo decidido por motivos profissionais. Ainda assim, fi-lo de
forma hesitante, sem a certeza de ter feito a escolha certa. Depois –
praticando, enganando-me, perguntando, corrigindo, aprendendo – lá fui
percebendo que ele incorpora muito mais escolhas com sentido, tendentes a
aproximar a escrita que uso da fala à qual recorro, mais naturais até para quem
se inicia na língua, do que aquelas, que também o integram, que permanecem
discutíveis e incómodas. Mas agora sinto-me muito bem com a escolha, convivendo
perfeitamente com os dois modelos e em nada me afligindo o facto de continuar a
ler muitos textos que seguem a norma anterior. Respeitando, sem problemas ou os
sinais de irritação que encontro em alguns dos seus adeptos jurados, quem desta
se continua a servir.
O que, porém, me parece
bastante mal, e só por isso regresso ao assunto, é permanecer no debate público
a ideia de que nada está realmente decidido e é possível voltar a escrever
«baptismo» ou «atracção». Mais do que a adaptação às novas regras, o que
incomoda, e tem vindo a permitir uma espécie de guerra levantada por quem quer
destruir o Acordo, é a indefinição em algo tão importante como a escrita da
língua e o silêncio do governo no claro asseverar de que tal não acontecerá,
deixando, às muitas pessoas que acataram ou escolheram conscientemente a
mudança, a certeza de que não o fizeram em vão. Quanto aos outros, os que
desejam continuar a servir-se da anterior norma, devem ter a certeza de que
essa é uma opção lícita. Afinal Pessoa, que neste particular acompanhou as
reservas de Pascoaes à Reforma de 1911, continuou a usar ph e y, e não foi preso
por isso. Mas devem também aceitar que o tempo não volta para trás.
Título e Texto: Rui Bebiano, “A terceira noite”
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