1. Uma democracia é um espaço aberto onde, em princípio, qualquer
um pode fazer valer sua opinião, o que permite milhares de formas de pressão, e
temos até mesmo a capacidade de mudar os governos. Isto funciona relativamente
bem.
2. O que não vai tão bem é a política, isto é, a possibilidade de
converter essa amálgama plural de forças em projetos e transformações
políticas, dar causa e coerência política a essas expressões populares e
definir o espaço público de qualidade onde tudo isso é discutido, ponderado e
sintetizado. Tem a ver com isso o fato de que para aqueles que atuam
politicamente, está cada vez mais difícil formular agendas alternativas.
3. Estamos em uma era pós-política, da democracia sem política.
Temos uma sociedade irritada e um sistema político agitado, cuja interação não
produz quase nada de novo, como teríamos o direito de esperar dada a natureza
dos problemas que temos que enfrentar.
4. A cidadania hoje evita as formas tradicionais de organização.
São crescentes formas de compromisso individual, um ativismo que não está
ideologicamente articulado em um quadro ideológico que lhe confere coerência e
totalidade, como poderia ser o caso das ideologias tradicionais abrangentes.
5. O espaço digital abriu novas possibilidades de ativismo
político. Para grande parte da população, a realidade representada pelos
partidos hierárquicos já não é mais atraente, enquanto a cultura virtual da
Rede permite articular confortavelmente suas ideias políticos fluidas e
intermitentes, e até mesmo ficar “off line” a qualquer momento.
6. O que não faltam são exemplos de ativismo e "soberania
negativa" no espaço físico, agora também ligados à mobilização digital. Eu
não questiono a bondade dessas ações de resistência cívicas ou campanhas
on-line, eu me limito a apontar que, por não se “inscrever” em qualquer
contexto político que lhes dá coerência, podem dar a entender que a boa
política é uma mera adição de ganhos sociais. Não funciona a articulação das
demandas sociais em programas coerentes que competem na esfera pública de
qualidade, em suma, falha a construção política e institucional da democracia
além da emoção do momento, da pressão imediata e da atenção da mídia.
7. O espaço público não se reduz à mera agregação apolítica de
preferências inconsistentes, agrupados como se não houvesse nenhuma prioridade
entre elas e até mesmo certas incompatibilidades. Alguém deveria organizar
essas revindicações com critérios políticos e gerir democraticamente sua
possível incompatibilidade. Se a política (e os tão criticados partidos) servem
para alguma coisa é precisamente para se integrar com alguma coerência e
autorização democrática as múltiplas demandas que surgem continuamente no
espaço de uma sociedade aberta.
8. Ao fato de que as demandas sociais estão desarticuladas, se
acrescenta a circunstância de que tais reivindicações são plurais, logicamente,
e, em ocasiões, incompatíveis ou contraditórias: uns querem mais impostos e
outros menos, uns querem softwares livres e outros proteção da privacidade e da
propriedade, alguns estão preocupados com menos liberdade e outros que tem
muitos imigrantes... Sem uma avaliação política é difícil saber quando se trata
de bloquear as reformas necessárias ou um protesto contra o abuso dos
representantes.
9. Em qualquer caso, aqueles que tendem a celebrar a espontaneidade
social deveriam se lembrar que a sociedade
não é o reino das boas intenções. A legitimidade da sociedade para criticar
seus representantes não quer dizer que aqueles que criticam ou protestam estão
necessariamente certos. O estado de indignado, crítico ou vítima, não faz de
você politicamente infalível.
10. A partir dessas trincheiras apolíticas, parecem dominar as
coisas com uma claridade que não dispõe aqueles que normalmente lidam com o
princípio da realidade. A raiva desses grupos não se dirige tanto aos
adversários como a eles mesmos, quando ameaçam rebaixar ao nível de
politicamente inegociável. Propagam uma mentalidade antipolítica porque não
entenderam que a política envolve sempre alguns compromissos e concessões. Os
setores radicais dos partidos definem o ritmo de uma forma que provavelmente não
corresponde a critérios de representatividade e dificultam certas reformas em
que o acordo político com adversários é necessário.
11. Pesquisas dizem que a política tornou-se um dos nossos
principais problemas e eu me pergunto, para concluir, se essa opinião expressa
uma nostalgia pela política que já não existe, uma crítica diante da sua
mediocridade, ou melhor, um desprezo antipolítico frente a algo cuja lógica não
se entende muito bem.
Título e Texto: Daniel Innerarity, professor de
Filosofia Política e Social e professor na London
School of Economics
Via: Cesar Maia, 19-03-2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-