Estou em crer que caso Cravinho e Bagão Félix tivessem escolhido um
daqueles restaurantes suburbanos que agora propõem pratos de pataniscas, mão de
vaca com grão ou massada de delícias do mar, mais sopa, vinho e café por 5
euros e meio outro teria sido o teor do manifesto dos 70.
Afinal a crise vista diante de
um croquete na Versailles é coisa bem diversa da perspectiva obtida face a uma
dose de cozido que dá para três num restaurante da Buraca (que ainda oferece
uma caixa para se levarem os restos para casa).
Os subscritores do manifesto,
tal como boa parte daqueles que desde 2011 nos vaticinam uma revolta todas as
semanas, sofrem de um problema de perspectiva: o país de que eles falam (e com
que eles contavam para nas ruas provarem a justeza das suas teses) não existe
nos moldes em que supõem.
O problema não é novo - um dos
erros da esquerda revolucionária em 1975 é que não percebeu que Salazar já
tinha morrido há alguns anos e que Portugal em Abril de 1974 não era o país
esmagadoramente rural dos anos 30 e 40. O que espanta é que se tenha voltado a
cair nesse erro, com uma candura de novatos ou uma arrogância de quem, mais
velho, se acha insubstituível, coisa que na prática leva ao mesmo.
Desde 2011 que muitos dos
subscritores daquele manifesto (a que há que juntar o PCP que em matéria de
manifestos frentistas que não controle é muito cauteloso) nos anunciam as
revoltas da fome e do fogo nos subúrbios. Acontece que os cortes têm afectado
muito mais a classe média - a tal que comia croquetes na Versailles e agora os
faz em casa - do que aqueles que eram pobres antes da crise e não ficaram mais
pobres com ela, antes continuaram a sê-lo, circunstância que longe de levar
alguém a revoltar-se antes pelo contrário a torna uma defensora do staus quo
pois é da estabilidade do poder que lhe vem a garantia de que não falham no dia
certo os ordenados e apoios sociais. E que naturalmente nos meses melhores, tal
como fazem há anos, continuam a ter como dias de festa aqueles em que vão
comprar frangos assados à churrascaria do bairro.
O desacerto com o país do
manifesto da Versailles é apenas um a somar aos muitos que em Portugal animam o
discurso político: são os defensores da escola pública que colocam os seus
filhos e netos em colégios privados; os que rasgam as vestes pelo SNS mas que à
primeira maleita correm para os hospitais privados; os académicos das políticas
de multiculturalidade mas que só entram nos bairros sociais quando uns
jornalistas muito activistas lá vão fazer umas filmagens, para animar um
documentário que passará num festival em Barcelona.
A vida está difícil. Mas ao contrário do que se supõe na pastelaria Versailles não está mais difícil para os mais pobres. Porque a vida desses sempre foi difícil. Ter imaginado que estes últimos iam complicar a sua já precária existência protagonizando revoltas ou supor que a vida dessas pessoas não seria afectada pela renegociação da dívida nos termos em que a propuseram no manifesto dos 70 é um sonho próprio de alguém que, comprazido pela superioridade das suas teses, se contempla no jogo de espelhos da Versailles.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 18-03-2014
Fotos daqui
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