“A alta cultura é a autoconsciência de uma
sociedade. Ela contém as obras de arte, literatura, erudição e filosofia que
estabelecem o quadro de referência compartilhado entre as pessoas cultas.”
A definição é de Roger
Scruton. Basta lê-la para perceber que a coisa aí definida cessou de existir no
Brasil há muito tempo. O único “quadro de referência compartilhado” que ainda
resta é a mídia popular, com seus chavões, seus erros gramaticais, seus
cacoetes de pensamento repetidos semanalmente por articulistas
semi-analfabetos.
Fora disso, há apenas
subculturas grupais que se ignoram mutuamente e cuja unidade interna provém
menos de crenças e valores compartilhados que de interesses profissionais,
financeiros ou políticos imediatos. Há uma cultura de empresários e
economistas, uma de evangélicos, uma de gays, uma de advogados, etc. Sobretudo
há uma de militantes esquerdistas que lutam com todas as armas da chantagem, da
intimidação e das propinas para torná-la hegemônica e assim fazem dela um
Ersatz grotesco de alta cultura, a mais eficiente garantia de que não haverá
alta cultura nenhuma.
Explica o próprio Scruton: “A
alta cultura é uma conquista precária, e dura apenas se apoiada por um senso da
tradição e pelo amplo endosso das normas sociais circundantes. Quando essas
coisas evaporam, a alta cultura é substituída por uma cultura de falsificações.
A falsificação depende em certa medida da cumplicidade entre o perpetrador e a
vítima, que juntos conspiram para acreditar no que não acreditam e para sentir o
que são incapazes de sentir.”
Esse parágrafo, que parece
extraído diretamente das páginas da Ponerologia em que o dr. Andrew Lobaczewsky
descreve o ambiente de fingimento histérico que se espalha pela sociedade
quando os psicopatas sobem ao poder, pode ser ilustrado por um fenômeno muito
preciso e muito característico do Brasil de hoje.
Todo mundo sabe que um dos
autores mais influentes na universidade brasileira é Michel Foucault. Foucault
criou uma modalidade especial de marxismo que é praticamente a crença geral e
oficial no nosso meio universitário, o qual, no entanto, não se limitou a
absorvê-la, mas lhe deu uma inflexão muito peculiar, muito nacional.
Karl Marx inventou a teoria da
ideologia, segundo a qual as idéias circulantes correspondem a interesses
objetivos das classes sociais. Sem dúvida, algumas correspondem, mas Marx diz
que todas são assim, que nada escapa à divisão do território mental entre a
“ideologia proletária” e a “ideologia burguesa”. Uma dificuldade temível, no
entanto, rói essa teoria desde dentro: ou as idéias e crenças de um cidadão são
determinadas pela sua posição de classe, ou, pertencendo a uma determinada
classe, ele pode aderir à ideologia de outra, como aliás fez o próprio Karl
Marx. Para que esta última hipótese se realize e não seja uma mutação
instantânea sem base racional, uma espécie de iluminação mística, tem de haver
um território neutro desde o qual o indivíduo em transição examine as
ideologias das classes em disputa e escolha livremente de que lado vai ficar. Mas,
se um indivíduo pode trocar livremente de ideologia, como Karl Marx
indiscutivelmente trocou, é claro que a sua ideologia pessoal não é determinada
pela da sua classe, e neste caso a expressão “ideologia de classe” se torna
apenas uma figura de linguagem.
Isso é motivo mais que
suficiente para abandonar de todo essa teoria ou no mínimo para só mencioná-la
cum grano salis. Mas Michel Foucault decidiu, em vez disso, radicalizá-la.
Levada às suas últimas conseqüências, a teoria resulta no seguinte: Diante de
qualquer idéia ou afirmação, não interessa saber se ela é verdadeira ou falsa,
se corresponde ou não aos fatos. Só interessa saber qual “esquema de poder” ela
defende, e só há dois esquemas de poder: o dos “opressores” e o dos “oprimidos”
– mais ou menos os mesmos que Karl Marx chamava de “burgueses” e “proletários”.
A pretensão de julgar as idéias pela sua veracidade ou falsidade é ela mesma um
“esquema de poder” a serviço dos “opressores”. Verdade e falsidade nem mesmo
existem: o filósofo deve esquecer essas noções e escolher sempre aquilo que
aumente o poder dos “oprimidos”.
É óbvio que, como toda negação
da verdade, essa tem a pretensão de ser ela própria uma verdade, caindo assim
num raciocínio circular que, no fundo, acaba não dizendo nada.
Mas uma coisa é inegável.
Embora a verdade não existisse, Foucault acreditava que sua teoria era
verdadeira. Os longos estudos que ele consagrou ao sistema penitenciário, à
instituição dos hospícios e à história da sexualidade mostram um sério esforço
de provar com fatos e documentos – muitos deles ficcionais, infelizmente -- a
correspondência entre as idéias e os grupos de interesse que elas, no seu
entender, representavam.
E é aí que entra o fenômeno
caracteristicamente brasileiro a que aludi acima. Seja nas suas aulas, seja em
seus pronunciamentos políticos, seja em artigos de mídia, o intelectual típico
da esquerda brasileira atual – digamos, um Valter Pomar ou um Tarso Genro --
aplica a teoria de Foucault de uma maneira sui generis, que ao próprio Foucault
surpreenderia: Ao acusar um autor ou opinador de falar em nome de um
determinado “esquema de poder”, ou seja, de um grupo social empenhado na defesa
de certos interesses, o referido personagem se dispensa de perguntar: (a) se
esse grupo existe; (b) se o acusado pertence a ele ou compartilha de seus
interesses. A redução das idéias a expressões de um “esquema de poder” passa a
valer por si como prova cabal da sua malignidade, independentemente de qualquer
base sociológica real. Se o que você diz diverge daquilo que o intelectual
esquerdista deseja ouvir, ele simplesmente o cataloga num grupo social
inexistente, ou alheio ao ponto em discussão, e está feito o serviço. A
veracidade ou falsidade do que você disse são postas fora de questão, não
mediante a filiação da sua idéia ao grupo social a que você pertence, mas
mediante a associação dela a algum grupo a que você não pertence ou que nem
mesmo existe.
Foi exatamente assim que,
fazendo eco a uma infinidade de intelectuais esquerdistas que não nos sonegaram
suas opiniões sobre os últimos acontecimentos, o autor do Caderno de Teses do V
Congresso do PT, ao ver na rua uma multidão inumerável de enfezados brasileiros
antipetistas de todas as classes, idades e raças, sem uma liderança definida e
sem qualquer apoio da mídia, dos partidos ou de qualquer organização
empresarial, concluiu que tudo era uma manobra da “classe dominante”
encabeçada, porca miséria!, pela Rede Globo, a qual, precisamente, fazia tudo
para minimizar a importância dos protestos e achincalhá-los de maneira não
muito velada. Amputada de suas pretensões sociológicas por mais mínimas e
evanescentes que fossem, a teoria de Foucault tornou-se uma técnica de xingar
qualquer um de qualquer coisa e depois ir dormir com a consciência tranquila de
haver desmascarado um temível “esquema de poder”. Do fingimento histérico a
esquerda nacional evoluiu para a fabulação psicótica.
Título, Imagem e Texto: Olavo de Carvalho, Mídia Sem Máscara, 25-4-2015
Título, Imagem e Texto: Olavo de Carvalho, Mídia Sem Máscara, 25-4-2015
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