Por cá a crença em magos é fulgurante. Temos as versões
domésticas: Cavaco Silva ou o ‘professor de Coimbra, meu Deus’. Temos as
versões estrangeiradas: António Borges e, por estes dias, Mário Centeno
Maria João Marques
Não deixa de ser reconfortante para os que não apreciam a
imprevisibilidade na natureza humana que nem perante as maiores calamidades os
maluquinhos parem de produzir os seus disparates.
Estava o mundo inteiro ainda
em choque com o terramoto do Nepal e a mortandade e destruição de casas e
monumentos que trouxe quando já a cantora turca e ativista dos direitos dos
animais Leman Sam informava o mundo sobre as causas do sismo. Claro que há
pessoas sensaboronas e crédulas que acreditam na verdade oficial de ter sido um
embate de placas tectónicas, com a placa indiana a deslizar mais do que o
costume para baixo da placa euro-asiática. Mas Leman Sam sabe melhor. E, para
nosso gáudio, contou-nos.
No final de 2014 ocorreu no
Nepal o festival em celebração da deusa hindu Gadhimai, sendo sacrificados
largos milhares de búfalos, cabras e pombos. Ora como é evidente – e a cantora
turca notou – o terramoto não se tratou de mais do que a deusa hindu reclamar
igual sacrifício dos humanos que sacrificaram os animais. Uma espécie de
reposição do equilíbrio cósmico, se quiserem. À parte ficar por esclarecer se a
deusa que fez tremer a terra foi Gadhimai outra vez, ou se foi Kali (que tem
reputação de destruidora), todos vemos que o tweet da senhora turca tem uma
lógica inabalável.
Um tanto desnecessário o
tweet, no entanto, porque a causa dos terramotos já havia ficado estabelecida
em 2010, quando um clérigo iraniano nos elucidou: é o sexo extraconjugal
(provocado, por sua vez, pelas vestimentas insinuantes das mulheres pouco castas)
que causa os terramotos. E como parece que o clérigo iraniano é dado à
literalidade, os terramotos que referia não eram os sensoriais nem as
consequências sísmicas nas relações humanas; não: eram mesmo aqueles que fazem
as casas tremer e os edifícios desabarem.
(Mário Soares – suspiremos –
apresentou também uma explicação alternativa, dando ideia de que as placas
tectónicas são reativas à usura dos mercados.)
E agora, enquanto os leitores
chamam desdenhosamente ‘rústicos e crédulos’ aos cientistas cujas conclusões
hoje vos trouxe, apresento-vos outra espécie de crença que, no fundo, não está
tão distante destas causas heterodoxas para os terramotos: a crença portuguesa
de que há uns magos que sabem como endireitar o país.
Os magos definem-se por serem
pessoas que estudaram muito – e lá fora, onde é tudo mais a sério. Logo, são
pessoas que ‘sabem’. E neste país com níveis de iliteracia embaraçosos e com
uma tradição de analfabetismo de que ainda hoje suportamos os custos, julga-se
que estudar nos torna imunes aos nossos valores, aos nossos preconceitos, à
nossa personalidade, à nossa visão do mundo. E nos permite alcançar uma
sabedoria imparcial, capaz de encontrar as soluções certas e justas. Lá está:
deixa-se de se ser humano para passar a ser um mago.
Estas ideias não são novas. O
déspota iluminado do antigo regime, cuja iluminação lhe permite governar pelo
Bem. O ‘homem superior’ confuciano, um letrado que governa os ‘homens pequenos’
e sabe melhor do que estes o que lhes é melhor. As formas de decisão
comunistas, que acreditam que o sacrossanto coletivo consegue sempre a decisão
imaculada. Todas as ditaduras, que nos oferecem o homem (geralmente é homem)
providencial que vai corrigir as injustiças, acalmar as desordens e impor a
moral (qualquer que seja).
Por cá a crença em magos é
fulgurante. Temos as versões domésticas: Cavaco Silva ou o tentado ‘professor
de Coimbra, meu Deus’. Temos as versões estrangeiradas: António Borges e, por
estes dias, Mário Centeno (cujas credenciais académicas de Harvard os
jornalistas, certamente com o coração acelerado de emoção, informam
esmeradamente). (De resto os jornais já noticiaram, para fazer prova de
imparcialidade, que o programa económico do PSD está a ser coordenado por três
economistas de Chicago, a alma mater de Milton Friedman; uma santíssima
trindade de magos de Chicago, portanto.) E temos as versões estrangeiras, as
que causam maior euforia. Os melhores exemplos são Paul Krugman e Thomas
Piketty. (A paixão não correspondida da esquerda portuguesa por Varoufakis é de
outra natureza, a ser analisada em eventual crónica à parte.)
Krugman esboroou a sua
qualidade de mago rapidamente, porque dizia heresias como a necessidade de
Portugal descer ordenados para se tornar competitivo (para mim, aqui como no
resto Krugman está errado). E o bom mago – ou, pelo menos, o mago perene – não
diz heresias socialistas. Mas Piketty ainda não desiludiu, pelo que foi
apresentado por socialistas de vários tons de encarnado (e pela comunicação
social) como quem transmite A Verdade Revelada. Do que ouvimos e lemos até
parece que não há contestação teórica ao seu trabalho e, ninguém tem
autorização para duvidar, o académico transmite-nos O Caminho. E façam favor de
não lembrar as calamidades mais mortíferas que o sismo no Nepal que provocou
por esse mundo a elevação da eliminação das desigualdades a fim último da
política – em vez de o muito mais nobre combate à pobreza.
Por tudo isto, quando por
estes dias nos cruzarmos com quem está como basbaque com Piketty (sei lá,
ocorre-me António Costa), lembremo-nos que sofre de uma irracionalidade que não
é assim tão diferente da de um clérigo iraniano e de uma cantora turca.
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