Os pilotos têm muita culpa na
sua greve suicidária. Mas há mais responsáveis. Em especial quem, para ganhar
umas eleições em 1999, realizou com eles um acordo obsceno. Às vezes é bom ter
memória.
José Manuel Fernandes
Há tragédias que têm um dom:
obrigar-nos a repensar as nossas preocupações. Fazer-nos reflectir sobre o
sentido das nossas queixas. Levar-nos perceber a pequenez de certas
reivindicações e certos protestos.
O que se está a passar desde
há alguns dias no Mediterrâneo é um desses momentos. Em dois naufrágios
sucessivos, mais de mil pessoas morreram apenas porque queriam chegar à Europa.
À nossa Europa. À Europa contra a qual protestamos todos os dias. A uma Europa
que, apesar de todos esses protestos, continua a ser um destino procurado pelos
deserdados, a uma Europa que, apesar de todas as queixas, continua a ser um dos
melhores locais do Mundo para viver, trabalhar, desfrutar a vida. Mesmo nos
seus dias difíceis.
É nestas alturas que olhamos
para as razões da greve dos pilotos da TAP e ainda mais estupefactos ficamos.
Sabemos que é uma greve suicida, pois pode provocar danos irreparáveis na
empresa que, apesar de tudo, lhes paga os ordenados. Sabemos também que é uma
greve estúpida, pois parece dar todas as razões aos que pedem – como eu peço –
a mais célere privatização da empresa, onde os pilotos seriam obrigados a
serem, pelo menos, mais responsáveis. É por fim uma greve egoísta, pois
recupera um famoso acordo, velho de quase 16 anos, que outorgava aos pilotos
direitos, por alturas da programada privatização, de que
nunca beneficiariam os restantes trabalhadores da empresa.
Escrever sobre esta greve é um
pouco como chover no molhado – já toda a gente se mostrou tão surpreendida como
indignada. Escrever sobre ela no dia de uma tragédia como a que foi vivida no
Mediterrâneo, pode parecer fútil. Mas mesmo assim faço-o, e por uma razão
simples: o conflito que hoje enfrentamos é, em boa parte, uma herança de uma
decisão política tomada em véspera de eleições, e suspeito que só aconteceu
para não prejudicar os resultados eleitorais do partido então no governo. Bem
sei que não foi caso único na história da nossa democracia, mas como ilustra
bem a forma como, muitas vezes, a demagogia trata de condicionar
a democracia, tal como ilustra bem a forma como se pode actuar com a maior
hipocrisia política, é importante recordá-lo. Porque está esquecido e porque
estamos, de novo, num tempo eleitoral.
No dia em que o acordo foi
assinado, 10 de Junho de 1999, Portugal estava a três dias de ir às urnas numas
eleições europeias. O PS apostara forte, candidatando como cabeça de lista
Mário Soares, procurando ganhar balanço para, em Outubro, chegar à maioria
absoluta nas legislativas. Havia no ar a ameaça de uma requisição civil (o
governo de então, de António Guterres, já tinha decretado uma, em 1997),
mas com o acordo tudo se resolveu, tudo se acalmou, o PS ultrapassou os 43% nas
Europeias e o vento pareceu ficar de feição para a desejada maioria mas
legislativas – a maioria que falharia por um único deputado, levando ao
“pântano” que levou ao pedido de demissão do primeiro-ministro dois anos
depois.
O acordo, como é óbvio, não
foi assinado directamente com o ministro que na altura tutelava a TAP, João
Cravinho, mas apenas pelo presidente da empresa, Norberto Pilar, e pelo do
sindicato dos pilotos. Passadas as eleições europeias, parece não ter havido
pressa em enviar o acordo para o Ministério, pois isso só sucedeu a 29 de Junho.
E Cravinho, depois, também deixou passar umas semanas para se pronunciar, pois
só fez um despacho a 14 de Julho. Mas isto depois de já ter feito um outro
despacho, a 18 de Junho, onde referia, por exemplo: “Apraz-me registar o
desenvolvimento do processo negocial em curso, visando a celebração de novo
Acordo de Empresa em condições de viabilizar a sustentabilidade da TAP. Nessa
perspetiva, considero conveniente o prosseguimento das vias já abertas,
incluindo a participação dos trabalhadores no capital social duma
transportadora aérea com origem na TAP”. Mais, pois acrescentava detalhes: “o
Acordo deve prever a designação pelos trabalhadores de um administrador que não
exerça funções executivas”.
Ou seja: ainda antes de
receber o texto do acordo, João Cravinho dava força à via negocial que estava
em curso e permitira evitar a incómoda greve em tempo de eleições. Mais tarde,
a 14 de Julho, reforçaria em novo despacho a orientação anterior, escrevendo
muito precisamente: “manifesto a minha concordância quanto à atuação referida
no ponto VI da carta de 99.06.29 do Senhor Presidente do Conselho de
Administração da TAP”. Era nesse ponto que se dava conta de intenção de
preparar o decreto-lei necessário para permitir cumprir o acordo com os
pilotos, nele prevendo a famosa cláusula de participação no capital de empresa
entre 10% e 20%.
O tempo passou, as eleições
foram-se, Cravinho foi substituído no governo por Jorge Coelho, a privatização
às mãos da Swissair borregou – e a própria Swissair faliu – e os governantes trataram
de esquecer o acordo de 1999. Afinal, já não era preciso para as eleições.
Os pilotos vieram agora
recuperá-lo. Aparentemente, só para causar ruído: um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral
de República, de 2012, considera esse acordo “inconstitucional e ilegal”.
Repito: não só ilegal, como inconstitucional. Ou seja, não há nenhuma possibilidade
de a actual administração ou o actual Governo o considerarem legítimo. É,
por isso, uma reivindicação fútil e que os pilotos sabem ser fútil.
(Pequena nota à margem:
João Cravinho, que sempre se apresenta como uma espécie de consciência moral da
República mas que não só assinou os dois despachos já citados, como não pode
ter deixado de dar instruções à administração durante o processo negocial, veio agora dizer que as exigências dos pilotos são
um “acto de má-fé e um dolo”, procurando fazer crer que as negociações com
os pilotos ocorreram “à sua revelia” e que, para o seu resultado ser válido,
era preciso ter submetido o acordo a conselho de ministros, o que nunca
aconteceu. Felizmente que podemos ler os despachos que emitiu na altura e,
assim, ficar a perceber o grau de desfaçatez com que alguns políticos
jogam com a muita falta de memória que hoje há em tantas redações.)
Não creio que, desta vez,
apesar de voltarmos a estar em ano de eleições, se vá ceder aos pilotos. Seria
um suicídio político em cima de um suicídio sindical.
Mais: o que acaba de se passar
com a abertura dos aeroportos açorianos às companhias low cost – por
imposição da União Europeia, sublinhe-se –, mostra-nos bem o que está em causa:
o proteccionismo, a inexistência de um mercado aberto, não beneficiou nem os
açorianos, nem todos quantos gostariam de visitar os Açores, apenas protegeu os
interesses das companhias instaladas e dos seus grupos de pressão internos.
É por tudo isto que esta greve
é especialmente imoral: procura arranjar uma forma de todos, sejam passageiros
ou contribuintes, pagarem privilégios de quem já é especialmente privilegiado:
os pilotos. É obsceno, para me ficar por aqui.
PS. O
governo do Syriza não tem dinheiro nos cofres, tem a receita fiscal a cair, a
economia – que estava a recuperar – está de novo de pantanas, e mesmo
assim Varoufakis ainda
acha que pode chantagear a Europa, mesmo depois de um outro povo europeu, o finlandês,
se ter pronunciado claramente sobre o que pensa de mais ajudas à Grécia. Isto
vai mesmo acabar mal.
Título e Texto: José Manuel
Fernandes, Observador,
20-4-2015
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