Paulo Tunhas
Gastar o que não há, ou quase
de certeza não haverá, produzirá dinheiro. Aparentemente, é esta ideia que
subjaz ao “cenário macroeconómico” do PS. O capitalismo socialista vê aqui um
círculo virtuoso.
Ninguém no seu perfeito juízo,
face à possibilidade do PS vir a ganhar as eleições, deseja vê-lo sem um
programa de governo credível e, sobretudo, nas mãos de gente que durante anos e
anos andou a girar em torno de Sócrates ou que segue os conselhos de Mário
Soares na sua última e terrível encarnação. Porque, a ser este último o caso, a
fatal consequência seria metermo-nos numa valente alhada da qual a nossa
preciosa pele sairia muito chamuscada. É no entanto difícil imaginar, olhando
para o que o PS mostra ao conjunto da população, mesmo àquela que não é
aficionada da política, como pode António Costa mudar esse triste estado das
coisas. De qualquer maneira, não custa enumerar uma pequena lista de obras
mentais que caberia levar a cabo.
Em primeiro lugar, António
Costa deveria esforçar-se por mudar António Costa. Entusiasmou-se com o Syriza,
depois não. Quis um candidato presidencial, depois outro, para no fim, pelo
menos no fim de até agora, se contentar com o que Soares lhe impõe. Faz um
discurso aos portugueses, e depois outro aos chineses. Quer um retorno ao
“vocabulário” da esquerda, supostamente colonizado pelo da direita, e depois
entusiasma-se com o Estado “empreendedor”. Entre muitas outras coisas. Com
tanta hesitação, para que queria Guterres? Ele próprio basta.
Em segundo lugar, António
Costa poderia bem levar o PS a abandonar a tentação lírica que se lhe tornou
quase uma segunda natureza. Comparar os aviões da TAP às caravelas dos
descobrimentos não dá. E o excessivo apelo à linguagem do coração, além de já
não comover ninguém por aí além, falseia o debate político. Contrapor aos
“cofres cheios” o sofrimento das pessoas releva da pura e simples
desonestidade: o sofrimento seria bem maior caso o Estado não pensasse no
amanhã. O “Sermão na Montanha” ocupa na nossa tradição um papel crucial, mas
não certamente como cartilha política.
Em terceiro lugar, António
Costa devia criticar sem tergiversações aquilo que declaradamente vai contra o
interesse nacional. A greve dos pilotos da TAP, por exemplo. Não o fazer
torna-o patentemente evasivo e não cria sem dúvida em ninguém a ilusão de uma
vasta sabedoria política. A não ser que ele acredite verdadeiramente que Mário
Soares tem razão quando afirma que com o PS no poder não haverá mais greves de
comboios, metros e TAP. Tanta fé nas possibilidades taumatúrgicas da sua pessoa
excederia claramente o verosímil. Mas, enfim, António Costa já acreditou em
José Sócrates, ao ponto de aceitar ser o seu número dois, e tudo é possível.
Em quarto lugar, António Costa
deveria incitar as várias cabeças do PS a procurarem um outro significado para
a palavra “socialismo” que não se resuma ao estatismo e à fixação nas empresas
nacionalizadas e “de bandeira” (horrível expressão). O problema não é uma
questão de vocabulário: é de conteúdos. Do velhíssimo vocabulário da esquerda,
qualquer português que leia jornais e televisão está muito a par.
E a demanda de ideias novas
não se faz descobrindo um livro que nos dê uma martelada na cabeça. Mas é o
que, mais uma vez, está a acontecer. Segundo as últimas notícias, os
socialistas dispõem-se agora a “pensar grande” e a avançar com espírito
visionário, sob o impulso da senhora Mariana Mazzucato, autora de um livro
intitulado “Estado Empreendedor”. Os exemplos dados em Portugal pela académica
em questão foram os dos Estados Unidos. O PS ficou entusiasmado. Depois da
Finlândia e depois da Irlanda, como nos idos de Sócrates, Portugal, para o PS,
vai querer ser como ele de repente descobriu (erradamente) que são os Estados
Unidos.
Uma coisa é certa. O PS quer
consumo, muito consumo, consumo a rodos, na velha tradição do capitalismo. Com
a diferença (em parte relativa) que é o Estado que vai pôr toda a gente a
consumir, acrescida de uma outra diferença (desta vez absoluta): que o quer
fazer com dinheiro que não há. Gastar o que não há – ou quase de certeza não
haverá – produzirá dinheiro. Aparentemente, é esta ideia que subjaz ao recente
“cenário macroeconómico” do PS. O capitalismo socialista vê aqui um círculo
virtuoso. Mas, como se sabe, a melhor maneira de transformar um círculo
virtuoso num círculo vicioso é afagá-lo constantemente. E os regulares afagos
socialistas do passado mostraram-nos os muito desagradáveis resultados de tal
prática.
Em quinto lugar, e quase
resumindo tudo, António Costa deveria procurar para o PS um firme ponto de
ancoragem na realidade. O que presume o abandono do culto da misteriosa
“vontade política”, que é o que se pede normalmente quando a realidade resiste
ao que nos dá mais jeito. Como se, por exemplo, o aeroporto de Beja (um exemplo
entre muitos) não funcionasse por falta de “vontade política”. Há resistências
da realidade que devem ser a primeira coisa a ter em conta quando se quer agir
politicamente, e muitas delas são insusceptíveis de serem vencidas por qualquer
mágica acção da vontade.
Reconhecer estas coisas e mais
algumas serviria sem dúvida para o PS de António Costa, ganhando as eleições ou
não, ajudar a que Portugal se tornasse uma sociedade mais decente,
simultaneamente consciente da realidade e obedecendo ao imperativo da busca da
justiça, uma sociedade melhor. Seria, de resto, uma boa forma de comemorar o 25
de Abril no que de mais valioso teve.
Mas, desgraçadamente, tudo
indica que se trata de um sonho dificilmente realizável. As ilusões do passado
formam um núcleo persistente que se cristalizou numa identidade inamovível para
além de algumas agitações de superfície. A tentação lírica persistirá e os
espúrios argumentos do coração, com o seu inevitável cortejo de indignações,
continuarão a saltar para a boca de cena sempre que os argumentos substantivos
falharem. O pequeno tacticismo substituirá um verdadeiro sentimento de
responsabilidade. O “socialismo” continuará preso à simples fixação no Estado
como tutor burocrático da sociedade. E a confiança na magia da “vontade
política” permitirá continuar a ignorar altivamente a realidade empírica.
Se não for assim, chapéu para
António Costa. Mas quem hoje ainda acredita que não vai ser assim? Um PS
alternativo não passa verossimilmente de uma figura da imaginação.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
23-4-2015
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-