Alexandre Homem Cristo
Tantos nos partidos à esquerda
exigem que o bicho-papão do Estado Novo permaneça vivo e fazem do 25 de Abril
currículo ou cadastro, convertido respectivamente em legitimidade ou
ilegitimidade política
O 25 de Abril, enquanto
momento simbólico da transição democrática portuguesa, não pertence a Mário
Soares ou a Manuel Alegre. Não é propriedade do PCP ou de qualquer outro
partido político. Não está na posse dos Capitães de Abril ou de heróis anónimos
que tenham auxiliado no derrubar do Estado Novo. E por mais que muitos
insistam, nem depende da esquerda ou da direita. Cada um desempenhou a sua
função na transição democrática e, sendo certo que alguns assumiram papéis
particularmente importantes, isso não dá direitos de titularidade a ninguém. O
25 de Abril não tem dono porque, se tivesse, não era o 25 de Abril – a
democracia é de todos, sem excepções ou particularidades.
É algo tão óbvio de dizer, e
tantas vezes já foi dito, que é fácil convencermo-nos de que já não é preciso
dizê-lo. Mas, pelos vistos, não deve ser assim tão evidente e é mesmo
necessário repetir. É que, se o fosse, não se via e ouvia o que se vê e ouve no
debate político: uma contínua apropriação do 25 de Abril por parte da esquerda,
que reduziu o seu simbolismo a uma caricatura argumentativa e a uma ilusão de
legitimidade política com o propósito de excluir a direita. O exercício tem,
aliás, nome técnico. Chama-se reductio ad salazarum, a versão
portuguesa da falácia reductio ad hitlerum, e constitui um
obstáculo à racionalidade do debate político. Não se deve comer legumes porque
Salazar gostava de legumes e, por isso, gostar de legumes não é bom. Ou, na sua
utilização política actual, afirmar que as propostas da direita são censuráveis
na medida em que, se Salazar fosse vivo, as defenderia. É absurdo, claro, mas
isso não impede que, quanto mais intenso for o debate, maior a probabilidade de
aplicação abundante do argumento.
Daí que Mário Soares, que
odeia Cavaco Silva, indicie o Presidente da República de ser um “salazarista
convicto”. Daí que Manuel Alegre justifique a sua discordância em relação ao
Governo afirmando que este é “contra o 25 de Abril”. Daí que Vasco Lourenço,
habitual representante dos Capitães de Abril, dê murros na mesa e anseie por
uma revolução que ponha no poder alguém que respeite o 25 de Abril. Daí que
João Galamba (deputado do PS) acuse Passos Coelho e, na altura, Vítor Gaspar de
terem discursos salazarentos. Daí que cada intervenção parlamentar do PCP
comece e termine com a denúncia de que o Governo está contra “as conquistas de
Abril”. Daí que as comemorações solenes no Parlamento sejam como foram neste
sábado – sem Soares, Alegre e Capitães de Abril, que não aceitam uma democracia
onde não são eles a mandar. Usassem os deputados bigode e ninguém acreditaria
que as imagens televisivas foram transmitidas em directo, em vez de resgatadas
do arquivo da RTP.
Não sei se, após 40 anos de
democracia, há muita gente com paciência para este tipo de argumentação, cujo
único propósito é desqualificar a parte direita do pluralismo político. Eu não
tenho. Problema meu?
Sim, é verdade. Mas é também
problema de todos, enquanto o país estiver refém de cabeças políticas que se
sustentam do seu passado. Soares, Alegre, Vasco Lourenço e tantos nos partidos
à esquerda exigem que o bicho-papão do Estado Novo permaneça vivo e fazem do
momento revolucionário currículo ou cadastro (convertido, respectivamente, em
legitimidade ou ilegitimidade política). Dito de outro modo, transformam o reductio
ad salazarum num pilar de acção política. E fazem-no, ironia das
ironias, alegando uma valorização do 25 de Abril, quando na verdade diminuem o
seu significado à banalização retórica, reduzindo-o a um argumento para quem
não tem argumentos. Há coisas que deviam ser óbvias: usar um símbolo do regime
como arma de arremesso não é, por certo, uma forma de o valorizar.
Talvez a única forma de
enterrar o machado e o reductio ad salazarum seja libertar o 25 de
Abril do passado, e aceitar que o motivo pelo qual o celebramos é o presente e
o futuro. Qual é o sentido de viver o 25 de Abril para ressuscitar o Estado
Novo? Para mim, nenhum. Eu já nasci num Portugal livre, com os olhos postos na
promessa europeia de modernidade e prosperidade. Cresci com a certeza da
liberdade, de todas as liberdades, sabendo que os direitos de que usufruo foram
privados a outros antes de mim. Não vivi o 25 de Abril de 1974 nem os anos
quentes que se lhe seguiram, mas conheço a história pelo que li e as histórias
pelos testemunhos que me chegaram. Sei que, apesar do caminho atribulado, a
democracia de que hoje não prescindimos começou em 1974 e foi sendo construída
em 1975 e 1976, com as suas virtudes e os seus defeitos. A cada 25 de Abril, é
essa democracia que celebro, pois são também essas as liberdades que quero para
mim e para os meus filhos. E, porque isso é tudo, não aceito que algo de tão
valioso seja, por parte de quem se apropriou do regime, reduzido a uma falácia
argumentativa.
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