terça-feira, 18 de agosto de 2015

Macroscópio – Tributo a um historiador muito especial

José Manuel Fernandes

Robert Conquest. Admito que este nome diga pouco ou nada à maioria dos portugueses. O que nem surpreende muito: nenhum dos seus livros, e escreveu muitos e importantes livros, foi editado em Portugal. Tinha 98 anos e morreu no passado dia 3 de Agosto, mas a sua morte passou tão despercebida em Portugal que o Macroscópio entendeu recuperar parte do que sobre ele se escreveu. 

Até porque foi um historiador que se destacou por ter demonstrado, pela primeira vez de forma sistemática e documentada, que o terror estalinista não fora um detalhe na história da União Soviética, mas um cataclismo que reclamara milhões de vidas humanas. Fê-lo num livro seminal, publicado em 1968, The Great Terror: Stalin's Purge of the Thirties. Com ele, tal como escreveu Josef Joffe, director do semanário alemão Die Zeit, “foi o primeiro a dizer a verdade sobre Estaline”. Mas já lá vamos.

(Vou confessar um pequeno bias: nestas férias segui uma das recomendações de Jaime Gama e li The Last Stalinist, de Paul Preston, um impressionante trabalho que mostra como aquele que é visto como um herói da transição de Espanha para a democracia não hesitou em ordenar centenas de execuções sumárias ou em organizar todas as purgas que foram necessárias para aceder ao poder absoluto na liderança dos comunistas espanhóis; para além disso também li recentemente O Homem que Gostava de Cães, do cubano Leonardo Padura, um romance onde se reconstitui toda a trama que levou ao assassinato de Trotsky. Nenhuma destas obras seria possível sem o trabalho pioneiro de Robert Conquest.)

Mas regressemos a Conquest para referir que o único trabalho que encontrei na imprensa portuguesa foi o obituário de Luís Miguel Queirós no Público. Nele se recorda que “Se os chamados processos de Moscovo tinham provocado grandes discussões no Ocidente e estiveram na base de livros como O Zero e O Infinito (1940), de Arthur Koestler, ou 1984 (1949), de George Orwell, Conquest veio defender que os pseudo-julgamentos de 1936-1938, que serviram a Estaline para executar uma boa parte da elite do partido bolchevique, incluindo dirigentes como Zinoviev, Kamenev ou Bukharin, deviam ser olhados como um mero pormenor no contexto da era de terror imposta pelo ditador georgiano, que teria resultado na morte de 20 milhões de pessoas.”

Este número impressiona mas hoje sabemos, desde que foi possível consultar os arquivos soviéticos depois da queda do regime comunista, que Robert Conquest for a de facto o primeiro a entrever a dimensão da tragédia. Isso mesmo trataria o próprio de confirmar, em 1990, quando publicou uma versão revista e aumentada do seu livro, The Great Terror: A Reassessment, no qual já utiliza materiais desses arquivos.  Entretanto um seu outro trabalho, The Harvest of Sorrow, de 1986, tornar-se-ia também na grande obra de referência sobre as fomes que vitimaram muitos milhões de ucranianos durante o processo de colectivização do início da década de 1930.

Mas vejamos algo do que se escreveu na imprensa anglo-saxónica, onde a morte deste inglês que se radicara em Stanford, na Califórnia, teve naturalmente o destaque que merecia. Eis algumas referências:


A revista The Economist, em The man who told us so, que recorda que ele chegou a combater, pelos republicanos, na Guerra de Espanha e a ser militante do Partido Comunista, sublinha o seu papel num dos grandes debates intelectuais do século XX: “The intellectual history of the West in the 20th century was dominated by arguments over totalitarianism: its causes, effects—and possible justification. Even after flag-waving supporters of the Soviet Union had dwindled to irrelevance, the conviction that communism was a good idea poorly executed persisted in certain quarters. (…) The position that communism was a monstrously evil system responsible for unprecedented atrocities was held by only a minority of scholars. Robert Conquest, who died on August 3rd, was one of the most eloquent and implacable members of that camp. To the chagrin of his opponents, he turned out to be right.”

O New York Times, ao escrever sobre o Historian Who Documented Soviet Horrors, detalha as dimensões do horror que ele descreveu: “The scope of Stalin’s purges was laid out: seven million people arrested in the peak years, 1937 and 1938; one million executed; two million dead in the concentration camps. Mr. Conquest estimated the death toll for the Stalin era at no less than 20 million.” O mesmo jornal cita também Norman M. Naimark, professor de historia da Europa de Leste na Stanford University: “He saw things clearly without having access to archives or internal information from the Soviet government. We had a whole industry of Soviet historians who were exposed to a lot of the same material but did not come up with the same conclusions. This was groundbreaking, pioneering work.”

Josef Joffe, num texto mais emotivo, Chronicler of evil, editado pelo Politico, notou que “The point of the Great Terror was that cruelty, oppression and contempt for human life was endemic to totalitarian systems. You could soften it, as under Khrushchev and Brezhnev, but not eradicate it. This was a simple insight, one would think, but the book was greeted with howls of derision and defamation on the left. His facts and his numbers were, if not wrong, wildly exaggerated, fumed the choir. Suddenly, Conquest was the “anti-Sovietchik no. 1,” as a high-placed Communist official put it.”

O obituário do Wall Street Journal, Seminal Historian of Soviet Misrule, recorda o nome que o seu amigo, o escritor Kingsley Amis, propôs para a segunda edição do Great Terror – “I Told You So, You F—ing Fools” – mas também lembrou os seus interesses variados: “A colorful private life didn’t distract Mr. Conquest from honing a spectrum of interests. He read French, German, Italian, Czech, Russian, Bulgarian, Greek and Latin. In addition to Sovietology, he became an expert on the twilight stage of the roughly 400-year period when Britain was part of the Roman Empire.” Isto sem esquecer que foi também um poeta e que os seus primeiros livros foram uma colectânea de poemas e um romance de ficção científica.

Esta sua vida muito variada foi também recordada pelo Quadrant em Vale Robert Conquest, Historian and Poet. Aí se recorda a sua passagem por Portugal muitos anos antes de se tornar historiador: “In Lisbon on an American passport at the outbreak of the Second World War, he returned to England to serve in the Oxfordshire and Buckinghamshire Light Infantry, and in 1944 was sent from Italy on Balkan military missions awkwardly attached to the Soviet Third Ukrainian Front – and later the Allied Control Commission in Bulgaria. From 1946 to 1956, he worked in the British Foreign Service – first in Sofia, then in London, and in the U.K. Delegation to the United Nations – after which he varied periods of freelance writing with academic appointments.”

Quanto aos seus poemas, há um que é recordado em muitos destes textos, um especialmente controverso porque nele refere-se que o terror de Estaline foi apenas a continuação e aprofundamento de um terror que já começara com Lenine:
There was a great Marxist named Lenin
Who did two or three million men in.
—That’s a lot to have done in,
But where he did one in
That grand Marxist Stalin did ten in.

(“Havia um grande marxista chamado Lenine/ Que liquidou dois ou três milhões./ É muita gente para alguém liquidar,/ Mas por cada um que liquidou,/ O grande marxista Estaline liquidou dez”, tradução do Público.)
(…) 
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, 18-8-2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-