João César das Neves
Existem fortes movimentos de
oposição às privatizações. É verdade que a população em geral não se interessa
pelo tema. Afinal, há quase 30 anos que se sucedem as vendas de activos
produtivos por parte do Estado, sem consequências significativas. Certas vozes
porém, sobretudo na esquerda, insistem no repúdio liminar, em cartazes,
inscrições e petições. O mais curioso é que isso subverte a sua própria posição
doutrinal.
Claro que a alienação de
empresas grandes é sempre complexa, e cada caso é um caso, com vantagens e
inconvenientes. Os críticos têm, pois, muitas vezes razão. O aspecto
interessante, porém, é que eles são contra mesmo quando não a têm. A sua
oposição é genérica e global. O motivo é evidentemente ideológico. Acham que
público é bom, simplesmente por o ser, e privado perverso em si mesmo; tal como
há quem defenda o oposto. Esse é, aliás, o motivo porque essas discussões se
incendeiam, acusando a outra parte de interesses sinistros. Há mesmo quem
considere que os adversários são monstros acéfalos, alucinados por propósitos
macabros ou doutrinas perversas. A simples acusação de neoliberal ou
esquerdista condena, dispensando os argumentos.
Abandonando estas explicações
simplistas, baseadas na preguiça intelectual, é preciso olhar para o fundamento
objectivo. Considerando os casos concretos é fácil constatar como esta posição
simplista contradiz muitas vezes a própria orientação doutrinal. Alguns casos
são mesmo caricatos: os activistas que se têm esforçado para comover a
população acerca da perda da "nossa" TAP, certamente não consideram
bem o que dizem.
A companhia aérea é pública
desde a sua fundação, mas o povo português pagou, com os seus impostos,
fortunas colossais para manter esse "privilégio". No momento da
venda, a dimensão da dívida e o reduzido encaixe do Estado mostraram bem como o
negócio era ruinoso. É verdade que isto pode ser dito infelizmente de muitas
outras empresas a privatizar, sobretudo nos transportes e comunicação. A
diferença aqui é que o serviço da TAP não beneficia a generalidade da
população, mas apenas os poucos que andam de avião. Quando todos pagam para
ganharem, sobretudo os ricos, como se entende que partidos radicais e forças
socialistas estejam tão afogueados a manter este sorvedouro de dinheiros
públicos?
As lógicas invocadas não
convencem. O facto de se tratar de produtos essenciais à vida social, aliás
duvidoso em muitos casos, levaria também a nacionalizar padarias, habitações e
pronto--a-vestir. Os verdadeiros bens de primeira necessidade estão entregues à
iniciativa privada desde sempre, sem que isso gere problemas. É verdade também
que existem razões bem estabelecidas para a regulação pública de certos
mercados, sobretudo infraestruturais e quando estão em causa problemas de
concorrência, desigualdade, acesso e outros. Mas é também patente que essa
intervenção governamental não implica a propriedade e gestão estatais, sempre
prejudicadas por dificuldades operacionais, podendo ser exercida através da
simples autoridade pública. Há muito que, além da sempre possível intervenção
directa dos ministérios, existe um conjunto de entidades reguladoras, para
acautelar precisamente os interesses nacionais em certos sectores.
Qual é afinal a origem de
ânsias tão alvoroçadas contra a privatização? A verdadeira razão é o oposto do
que dizem. O princípio mais invocado é que a empresa pública serve a população
enquanto a privada quer o lucro do patrão. Só que esta generalidade esconde uma
realidade ambígua. O sucesso empresarial vem só da satisfação do cliente, o que
domina a ganância capitalista, gerando um equilíbrio que reduz os medos
retóricos. Por outro lado, o serviço público é frequentemente capturado por
certos interesses particulares que beneficiam muito à sombra do Estado.
Eis o busílis! Não são os
utentes que protestam contra a privatização, mas os funcionários e fornecedores
da empresa vendida, dizendo agir em nome do público. Fazem-no porque essa
alienação manifesta e compromete as benesses, regalias e negócios que os
participantes nas empresas públicas, dizendo-se servidores do Estado, conseguiam
extrair, à sombra dos impostos e protecção legal. É daqui que nasce a fúria
antiprivatização.
O que gera outra conclusão. Na
oposição militante à venda de empresas públicas mal geridas, os movimentos de
esquerda manifestam estar dominados, não pelos interesses da população, e ainda
menos dos proletários, mas pelas conveniências de um funcionalismo burguês,
fingindo-se revolucionário.
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