quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Centeno ou Varoufakis?

Manuel Serrão
António Tsipras e Mário Varoufakis?
Se alguns portugueses não sentiram nos últimos dias aquela famosa sensação de déjà-vu, tenho a certeza que os credores que Portugal tem em comum com a Grécia já experimentaram essa sensação nos últimos tempos. Claro que todos sabemos que Portugal não é a Grécia, por milhares de razões e a Europa também tem perfeita consciência que António Costa nunca chegará a ser Tsipras, tal como não é possível de forma alguma comparar Mário Centeno a Varoufakis.

De qualquer forma o que está em jogo nestes dias, em termos conceptuais, tem muitos pontos de contacto com essa memória, ainda que a intensidade seja muito menor. Trata-se de pôr em pratos diferentes da balança as realidades e os sonhos.

1. Trocar o certo e a realidade...

Goste-se ou não da política e estratégia que o anterior Governo pôs em prática e pôs a comandar as suas relações com a troika, há que reconhecer que nessa época o que se propunha e o que se antevia era que o fim progressivo da austeridade estaria dependente e acompanharia proporcionalmente o desempenho positivo da situação económica e financeira.

Quando Maria Luís Albuquerque vem dizer que sofreu uma enorme desilusão com a impossibilidade de devolução já em 2016 da taxa aplicada nos anos anteriores, eu quero acreditar que, de facto, existiu no Governo de Passos Coelho a ilusão, o sonho, de que a realidade da economia pudesse permitir o abrandamento progressivo das penalizações aos contribuintes portugueses.

Em suma e em resumo, caricaturando de certa forma esta situação, podemos dizer que o Governo PSD/CDS partia do certo, da realidade, para o sonho. Bem ao contrário daquilo a que temos assistido a propósito do novo Orçamento do Estado do Governo de Esquerda, agora o que se propõe é que partamos do sonho para a realidade.

No primeiro caso tratava-se de exigir que a realidade pudesse permitir qualquer sonho ou veleidade. No atual orçamento, o que vemos é a ideia voluntarista de que a realidade está obrigada a cumprir o sonho. Todos os sonhos.

2. … pelo incerto e pelo sonho

Face a este cenário, se por um lado admito que a forma de negociar de Mário Centeno e seus pares estará a quilómetros-luz das "palhaçadas" com que os ministros gregos brindaram a Europa no passado, também acredito que a ocasião não é a mais propícia para os sonhos, ainda que delicados, do Governo de Esquerda.

Para além do fantasma grego que parece já distante, existe a realidade espanhola de um país que não consegue formar Governo e que até parece que está à espera de ver o que consegue o nosso Governo junto da Europa, para decidir se segue ou não o mesmo caminho.

Numa Europa a rebentar pelas costuras com a crise dos refugiados e a experimentar uma retoma económica ainda incipiente, não me parece nada fácil que Mário Centeno possa colher os frutos desejados (e cada vez mais proibidos) com que tem tentado convencer os parceiros europeus, de sorriso aberto e pancadinha sempre pronta nas costas. Como diz o povo, "agora é que a porca torce o rabo". Agora é que vamos ter a prova dos nove em relação à consistência do acordo com que o PS chegou ao Governo.

Excetuando uma ou outra pequena surpresa, como pode ter sido o caso Banif, a verdade é que as contas eram conhecidas e não é crível que o PS tenha construído o seu Governo em cima de um acordo, em que tenha escrito e concordado com todos os sonhos, sem que lá exista uma única cláusula de salvaguarda da realidade. É por isso que estou convencido que este tempo negocial tinha mesmo de existir, mas que também o próximo Orçamento do Estado já tinha o seu destino traçado. Pelo que vai ser aprovado de acordo com as exigências da Europa e dos credores e a verdadeira realidade do Estado da nação. Numa linguagem muito em voga (e que o próprio António Costa até recorda de uma campanha autárquica) o que mais nos faltava agora, era que logo na primeira curva o "Ferrari" se estampasse, como se levasse um burro ao volante. 
Título e Texto: Manuel Serrão, Jornal de Notícias, 4-2-2016

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