Helena Garrido
As políticas públicas têm hoje a marca do
caso a caso, sem estratégia, só com táctica. A forma como se reduziu o défice é
um bom exemplo. Irónico até, por parecer confirmar a austeridade expansionista
O modelo de Governo que temos,
numa aliança instável à esquerda, leva-nos a perceber as razões de vivermos
hoje mais do que nunca, em democracia, com políticas públicas casuísticas, sem
qualquer estratégia. Para um país que precisa de mudanças complexas, porque
envolvem alterações nos comportamentos e nas hierarquias de valores, uma
política enviesada para os objetivos do presente corresponde a adiar o nosso
desenvolvimento. O primeiro-ministro é um político hábil, mas é um político sem
margem ou sem vontade de elevar o País para um novo patamar de desenvolvimento.
A Conta Geral do Estado de
2016 revelou que tinha razão quem alertou para a impossibilidade de aumentar os
salários da função pública e, ao mesmo tempo, reduzir o défice orçamental na
fase da recuperação em que estávamos. Todos estavam a olhar para a despesa que
o Governo dizia que ia fazer, inscrita no Orçamento do Estado aprovado na
Assembleia da República. Como sempre se fez. As análises e comentários foram
sempre realizados tendo como referência esse documento. Nunca passou pela
cabeça de ninguém que as cativações se transformassem em cortes efetivos
daquela dimensão, o valor histórico de 942,7 milhões de euros.
É sem dúvida de mestre da
política (menos da democracia e da transparência) ter concretizado a política
orçamental dessa forma, dando aos cortes a designação de “cativação”.
Compreende-se que só assim o Governo conseguiria, ao mesmo tempo, o que parecia
uma missão impossível: ter a aprovação de Bruxelas e do PCP, do Bloco de
Esquerda e do PEV. Casar os contrários.
António Costa não lhes podia
dizer o que ia fazer e eles, mesmo sabendo, tinham de fingir que não sabiam que
os serviços públicos estavam a ser colocados a “pão e água”, para que pudessem
dizer que a austeridade acabou porque se repuseram os salários da função
pública e algumas pensões.
Levando em conta a qualidade
de alguns deputados do PCP e do Bloco é impossível que não soubessem o que se
estava a fazer. Sabiam e sabem. O PCP tem ainda razões acrescida para ter
conhecimento antecipado de que as cativações se tinham transformado em cortes efetivos,
que os serviços estavam sem recursos para trabalhar. Porquê? Por causa da sua
ligação aos sindicatos da função pública. Souberam e sabem que foi à custa dos
serviços públicos prestados aos cidadãos que conseguiram dizer alto que
obrigaram o Governo a repor salários. Assumiram uma atitude de “engana-me que
eu preciso e gosto”.
Mas mais grave do que tudo
isto é percebermos que, durante mais de um ano, não houve uma palavra dos sindicatos
da administração pública ou de outras organizações denunciando a situação de
falta de recursos. Íamos ouvindo aqui e ali que havia falta de dinheiro para o
Estado funcionar, que se adiavam encomendas ou se usavam técnica de devolução
de faturas para evitar pagar, mas ninguém dava a cara. Uns, como os sindicatos,
porque estavam satisfeitos com a reposição salarial e indiferentes à degradação
dos serviços. Outros, como os funcionários públicos, porque viram o seu poder
de compra regressar ou porque obviamente não podem falar já que correm riscos
de processo disciplinar.
Sejam quais forem as razões, o
que se passou na administração pública em 2016 revela bem a fragilidade dos
mecanismos de escrutínio da nossa democracia. Com os sindicatos e os partidos,
que desempenhavam o papel de contestação e denuncia, capturados pelo Governo,
ficámos sem meios para saber o que se estava a passar na administração pública.
Só o conseguimos saber parcialmente agora, com a publicação dos grandes números
da Conta Geral do Estado. E parcialmente porque os grandes números nunca nos
fornecem um retrato pormenorizado dos efeitos dos cortes.
A táctica de desacreditar
todos quantos tentaram demonstrar que tinha de existir um “Plano B”,
designadamente instituições como o Conselho das Finanças Públicas e Banco de
Portugal ou analistas, economistas e jornalistas, completou o leque da
tentativa de condicionamento e controlo da informação que chegou à população em
geral. Com óbvios custos para a qualidade da nossa democracia. Só quem teve de
usar os serviços públicos com frequência percebeu o que se estava a passar mais
cedo. A maioria de nós só agora está a perceber os efeitos de colocar o (pouco)
dinheiro que se tinha mais nos salários do que no funcionamento do serviço ao
cidadão.
A indiferença do PCP, do
Bloco, dos Verdes e do PS em relação aos efeitos dos cortes nas despesas de
funcionamento expõem igualmente as preferências dos partidos. Preferiram a
conquista do poder, o populismo da devolução rápida dos salários da função pública
e das pensões – com especial relevo para as mais elevadas – à garantia de
recursos para o funcionamento do Estado. Não é uma crítica, é uma constatação.
Houve uma escolha super-enviesada para o presente, com o objetivo de conquistar
o poder. A expectativa, esperemos, foi que o tempo, com o crescimento,
permitisse aliviar a austeridade que se estava a impor ao funcionamento do
Estado.
O crescimento veio, mas ainda
não parece suficiente para garantir recursos para o funcionamento do Estado.
Ironicamente, a economia recuperou o ímpeto de crescimento que tinha perdido no
primeiro semestre de 2016, apesar da política orçamental contracionista. Como
que numa vingança dos deuses, é com o PS que se verifica a famosa “austeridade
expansionista” – a economia cresce com políticas orçamentais contracionistas.
(Atenção que as teorias da austeridade expansionista são apoiadas por um número
limitado de economistas e estão em geral relacionadas com dificuldades no
acesso a financiamento. O nosso crescimento em 2016 tem a sua principal razão
no sector privado induzido pelo turismo). Assim como é irónico que o PSD tenha
sempre perseguido objetivo de reduzir o défice com menos despesa sem o
conseguir – foi sempre com mais impostos. E o PS, que nunca o defendeu dessa
forma convicta, acaba por ser o partido que consegue diminuir o défice público
graças fundamentalmente a menos despesa.
Não podemos nem devemos
atribuir ao modelo de austeridade de 2016 o que se passou em Pedrogão Grande e
em Tancos. A explicação para esses dois terríveis acontecimentos está mais na
desorganização e irresponsabilidade. Mas nada nos garante que as escolhas
ditadas pela viabilização deste Governo não tenham custos. Mais visíveis, como
a degradação dos serviços, ou menos quantificáveis como aqueles que resultam da
ausência de uma estratégia com custos eleitorais no curto prazo, mas com ganhos
de desenvolvimento a médio e longo prazo. As tais políticas de organização,
responsabilidade e gestão para podermos dizer “Pedrogão nunca mais”. A política
do caminho caminhando nada muda, é conservadora do bom e sobretudo do mau.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
13-7-2017
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